Pronunciamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à imprensa por ocasião da visita do presidente do Chile
Bem, eu quero cumprimentar o companheiro Gabriel Boric, presidente da República do Chile. Quero cumprimentar os ministros e as ministras que o acompanham nesta viagem ao Brasil. Quero cumprimentar os ministros e as ministras brasileiras que me acompanham nesta reunião. E dizer para o companheiro Boric que essa sua visita ao Brasil, quando nós estamos completando 189 anos de relações diplomáticas, quando nós estamos fazendo a primeira reunião depois de definirmos o ano da amizade Brasil-Chile, dia 22 de abril.
Não sei se você sabe, hoje foi o dia em que os portugueses descobriram o Brasil. Há rumores de que eles já sabiam que o Brasil existia. Mas como a história tem que ter um início, então o início é 22 de abril de 1500.
E esse dia, para mim, é muito importante, não apenas pelos acordos, pelos protocolos de intenções que foram assinados aqui. Eu penso que essa reunião é importante por conta do momento político que o mundo vive. Não sei, companheiro Boric é muito jovem, mas tem uma boa experiência acadêmica e ele sabe que os nossos países, durante quase 400 e poucos anos, eram induzidos a se tratarem como inimigos.
O Brasil vivia de costas para toda a América do Sul, o Brasil olhava para a União Europeia e para os Estados Unidos. E a América do Sul também olhava por cima do Brasil, atrás de enxergar a Europa e atrás de enxergar os Estados Unidos. Era como se nós fôssemos possíveis inimigos. Eu conto sempre que o presidente Chávez, antes de ser presidente, ele era da Academia Militar da Venezuela, e como acadêmico e professor, ele me dizia que, durante muito tempo, as aulas que ele dava para os militares da Venezuela eram de que o Brasil era o inimigo.
Era com o Brasil que a América do Sul tinha que se preocupar, não era nem com os espanhóis, que foram colonizadores, e muito menos com os Estados Unidos ou os ingleses. Era o Brasil. E isso aconteceu em outros países. E quando eu cheguei na Presidência da República, eu descobri, e estava contando para o presidente Boric, a primeira ponte em 500 anos de história entre Brasil e Bolívia foi feita no meu governo, na cidade de Brasiléia, no estado do Acre. Mais importante, a primeira ponte entre o Brasil e o Peru foi feita também no meu governo, depois de 500 anos.
Essa era a demonstração mais viva de que nós ficamos de costas um para o outro durante muito tempo, bajulando os ricos e desprezando os pobres, os nossos parceiros. Isso não é muito diferente do comportamento habitual das pessoas. Hoje, uma pessoa, se tiver um parente muito pobre, não convida nem para o aniversário, nem para o batizado. Porque se convoca, normalmente, aquela pessoa que tem mais posse.
E foi assim que o Brasil foi criado durante muitos anos. Só para você ter ideia, Boric, o Chile teve a sua primeira universidade em 1842, segundo o nosso companheiro Alberto van Klaveren. Em 1842. O Brasil só foi ter a sua primeira universidade em 1920.
Só para você perceber a submissão que nós tivemos durante tantos anos aos colonizadores que nos colonizaram. E é por isso que eu sou um cidadão obcecado pela integração. Eu acho que nós, presidentes de países da América do Sul, deveríamos compreender que, isolados, nós somos muito fracos.
Nós não nascemos para viver mais 500 anos como um país pobre. Nós não nascemos para viver mais 500 anos vendo nossos países serem governados para 35% ou 45% da população, como se o restante da sociedade fosse tratado como invisíveís. Aqueles que não se enxergam. Aqueles que só aparecem na época das eleições para colocar os que esquecem deles no poder durante os mandatos presidenciais. É essa lógica que pessoas jovens, como você, que pessoas jovens como eu, não tão jovens, podem mudar. É preciso mudar a compreensão da política.
É preciso mudar a compreensão de porquê nós queremos um cargo de presidente da República. É preciso mudar a compreensão de que nós, sozinhos, seremos muito frágeis. Um país como o Chile, um país como a Bolívia, um país como o Equador, um país como o Uruguai, o Brasil, mesmo o Brasil, que é um país grande territorialmente, mas economicamente e tecnologicamente ainda é fraco diante do que poderia ser, quando você vai negociar com uma grande potência, você fica muito vulnerável.
É como se fosse um acordo leonino, ou seja, um acordo de cláusulas que só favorecem ao grande, e ao pequeno, nada. É por isso que nós aqui, durante a campanha de 2002, eu era contra a ALCA. Muita gente não entendeu, mas eu era contra a ALCA porque eu achava que a ALCA, só um país poderia ganhar com a ALCA: o Brasil. O restante seria uma política de submissão.
Eu estou lhe dizendo isso, porque você está terminando o mandato de quatro anos na presidência do Chile. Acho que você foi o presidente mais jovem do Chile. Acho que nunca teve ninguém tão jovem saído das passeatas do movimento estudantil para ser presidente do Chile. E eu sou o único presidente do Brasil que me reelegi três vezes no Brasil. Então tem uma certa similaridade entre o comportamento do povo chileno em votar num jovem como você e o povo brasileiro votar num velhinho como eu.
Tem uma certa similaridade. Mas uma coisa que pode nos fazer simbolizar uma novidade na política da América do Sul é que nós precisamos trabalhar com muita força e com muita intensidade a necessidade da nossa integração. Quando a gente preside um país, a gente não o preside de forma ideológica.
Eu não quero saber se o meu adversário ali do lado ou se o meu oponente do outro lado, se ele é presidente, se ele é de direita ou de esquerda. Eu quero saber que ele é presidente de um país e eu quero manter com ele uma relação de chefe de Estado. E por isso eu preciso criar instituições sólidas que, independentemente do governo, essas instituições funcionem.
Não pode ficar dependendo do presidente. “Ah, hoje está o Lula, eu participo de uma coisa. Amanhã não está o Lula, o Brasil não participa. Hoje está o Boric, participa, amanhã não está o Boric, não participa”. Política comercial, política cultural, política, a geopolítica do mundo não é feita de ocasiões. Ela tem que ser perene.
E nós precisamos construir com instituições que deem seguridade ao exercício da democracia, independentemente de quem seja o presidente da República. Como será o Brasil quando eu não for mais presidente? Se entrar a extrema-direita aqui. Como será o Chile se entrar um extrema-direita no Chile? E assim para todos os países.
Vamos ver a diferença dos Estados Unidos, do Biden [Joe Biden, ex-presidente dos EUA] para o Trump [Donald Trump, presidente dos EUA]? O que é que mudou nesse mundo? É isso que nós precisamos pensar para consolidar duas coisas. Primeiro, a democracia. Segundo, o multilateralismo. Terceiro, o livre comércio. Veja que coisa fantástica, Boric. A relação comercial entre Brasil e Chile atingiu 11 bilhões e algumas coisas de dólares.
Muita gente aqui no Brasil, muita gente do povo, muitos jornalistas, inclusive, se você perguntar, ele pensa que o grande comércio do Brasil é com a França, é com a Inglaterra, é com a Itália. Só tem dois países europeus que têm mais comércio do que Brasil e Chile. É a Espanha e a Alemanha.
O restante, o fluxo comercial do Brasil e do Chile é maior do que todos. Como foi com a Argentina. Quando eu tomei posse em 2003, o fluxo da balança comercial entre Brasil e Argentina era de apenas 7 mil millones. Gostaram dos mil millones aqui de dólares? Era 7 bilhões de dólares.
Quando nós deixamos a Presidência, eram 39 bilhões de dólares. A nossa relação comercial com a América do Sul era de 15 bilhões de dólares. Quando deixamos, chegou a 89 bilhões de dólares.
Numa demonstração que parte da solução do nosso problema está na nossa mão, está próximo de nós, está com nossos parceiros. E, muitas vezes, por uma questão cultural, por uma questão de disputa que nenhum de nós sabe como é que começou, a gente tem uma certa incapacidade de fazer as coisas acontecerem com rapidez. Nós precisamos, daqui para frente, companheiros, estabelecer metas.
Uma reunião dessa, cada protocolo que a gente assinar, tem que ter uma meta. Até tal data tem que ser cumprido isso. Porque, senão, a burocracia não executa. Senão, ao invés de marcar uma reunião amanhã, deixa para marcar no mês que vem. Ao invés de marcar no mês que vem, marca no ano que vem e o tempo vai passando. E as pessoas não se dão conta que o burocrata é eterno.
O mandato presidencial, ele tem prazo de validade. Você, cara, teve um dia que você tomou posse. E sua validade vai terminar em novembro, quando vencer o seu mandato.
E é inexorável, porque é constitucional. Então, vai entrar um outro presidente que a gente não sabe se vai ter essa boa relação que nós temos com o Brasil, ou vice-versa, que seja do Brasil para com o Chile. Então, é importante que a gente discuta com muita seriedade essa questão da democracia.
É muito importante que a gente discuta a necessidade da integração. Nós tivemos a coragem de ter alguns presidentes que pareciam conservadores na época: o Sarney [José Sarney, ex-presidente do Brasil] e o Alfonsín [Raúl Alfonsín, ex-presidente da Argentina] que tiveram coragem de criar o Mercosul. Nenhum dos dois eram progressistas, mas tiveram a competência de compreender a necessidade da integração.
A Argentina está próximo de mim, o Chile está próximo de mim, o Uruguai está próximo de mim, o Paraguai está próximo de mim. Por que eu não posso estreitar minhas negociações com eles? Por que que eu não posso tentar vender mais e comprar mais? Por que que eu não posso discutir integração com esse corredor bioceânico que a Simone Tebet [ministra do Planejamento e Orçamento] fez a apresentação para nós? O planeta é o mesmo há milhões de anos, o Pacífico está ali, o Atlântico está aqui.
E por que a gente, somente agora, 160 milhões de anos depois da existência do planeta ou sei lá quantos milhões de anos, é que a gente resolveu descobrir que tem possibilidade de fazer um corredor bioceânico entre nós? Essas coisas que têm que mover a nossa capacidade de governança quando a gente assume a responsabilidade de governar um país. Eu sonho com a integração.
Eu não sou do tempo do sonho da grande América, eu não sou do tempo dos libertadores tipo, os nossos que conquistaram a independência. Eu sou um libertador novo. Ou seja, eu descobri que é preciso integração, porque o Chile está ali, o Chile está perto de mim. Um outro país na ASEAN, está muito longe. O Paraguai está ali, perto de mim. O Uruguai está ali, o Equador está ali. Se não tiver estrada, tem rios.
Se não tiver rios, têm aeroportos, se não tiver, faz estrada, faz ferrovia. Mas nós precisamos aproveitar isso para fazer a nossa economia crescer. Eu não consigo imaginar por que, na América Latina, nenhum país ficou rico. Por que que a gente não tem nenhuma Holanda? Celso [Celso Amorim, assessor-chefe da Assessoria Especial do presidente da República], você que é o decano, você que é o decano deste plenário aqui. Por que que a gente não tem nenhuma Holanda? Nenhuma Noruega? Nenhuma Dinamarca? Nenhuma Áustria? Por que que a gente não teve nenhum país nórdico que crescesse do ponto de vista tecnológico científico? Por que o México não é o Canadá? Por que o México é mais pobre e o Canadá é rico?
Por que que na América Central só teve países pobres? Os Estados Unidos poderiam ter financiado o desenvolvimento em El Salvador, na Guatemala, em Honduras. Ali, vizinho, ali, todo mundo poderia ser um satélite de desenvolvimento extraordinário. Não, mas continua todo mundo pobre.
E todo mundo nômade, porque todo mundo quer viajar para os Estados Unidos para ver se melhora de vida. Depois de ajudar a construir a riqueza americana, aparece um presidente que trata eles como inimigos. Latino-americano agora é tudo inimigo. Vai todo mundo embora, que os Estados Unidos é dos Estados Unidos.
Mas aqueles latino-americanos não ajudaram a construir? Ajudaram a construir? Então, são essas coisas que nós precisamos pensar. E esse acordo que nós assinamos aqui, Boric, é apenas o começo de uma história entre você e eu.
Você ainda tem cinco meses de mandato. Eu ainda tenho um ano e seis meses. Um ano e sete meses. Ainda tenho um bom tempo. Mas eu acho que, nesse pouco tempo que você tem, é preciso que a gente consiga fazer aquilo que a gente não pôde fazer até agora. Primeiro, a gente precisa convencer o nosso pessoal da importância.
Eu convivi com o Uribe de forma extraordinária. O Uribe [Álvaro Uribe, ex-presidente da Colômbia] era um homem de direita, mas ele participava da UNASUL. E a gente convivia muito bem.
O Piñera [Sebastián Piñera, ex-presidente do Chile], eu tenho grande saudade da relação com o Piñera. O Piñera, quando era presidente do Chile, eu já não era mais presidente do Brasil, ele me recebeu dentro do La Moneda e veio a São Paulo e foi me visitar no escritório. E me disse assim: “ô Lula, você quer ser presidente outra vez?”. Eu falei: não. Ele falou: “Pois eu quero”. E voltou a ser presidente.
Mas a relação era muito boa. Não precisava ele gostar do Chávez, ou o Chávez gostar do Toledo, ou o Toledo gostar do Alan Garcia, ou o Alan Garcia gostar do Rafael Correa, ou o Lula gostar do... Não precisava ninguém gostar de ninguém. A gente não estava tratando de casamento.
A gente estava tratando de relação geopolítica, de relação entre Estado. E é isso. Ou nós aprendemos isso, ou nós vamos continuar 500 anos pobres. Nós precisamos dar um salto de qualidade. Como será o Chile sem cobre? Como será o Brasil sem o petróleo? Como será o Brasil sem a sua potente agricultura empresarial ou agricultura familiar? Nós precisamos pensar, diversificar nossa relação, procurar novos parceiros, novos aprendizados. Porque, senão, a gente vai continuar mais um século pobre. Ô, gente, quantos anos que existe a Igreja Católica? Dois mil anos? E pela primeira vez um Papa latino-americano, na região mais católica do mundo? Algo está errado.
Ô, Boric, quando eu fui disputar as Olimpíadas, para o Brasil ganhar as Olimpíadas em 2016, você acredita que nós descobrimos que, na África inteira, um continente com 54 países, tinha menos delegados, tinham menos delegados do que a Suíça? Porque essas instituições não foram feitas para nós. Foram feitas para os países colonizadores. Então, a Itália tinha cinco delegados, no COB nacional, a Suíça tinha cinco delegados, a China tinha um.
Então, por que eu estou dizendo essas coisas? Porque, Boric, é o seguinte, nós precisamos descobrir que, na hora que você tem um presidente da República de um país importante, como os Estados Unidos, que resolve estabelecer a discussão favorável a uma política protecionista, contrário a tudo que foi falado para nós desde os anos 80. A globalização, o livre comércio, ou seja, todo mundo só falava em livre comércio e globalização, e, de repente, nada disso vale a pena. O que vale a pena é o seguinte: é o protecionismo. Você não quer guerra fria e eu não quero guerra fria. Eu não quero fazer opção entre Estados Unidos ou China.
Eu quero ter relações com os Estados Unidos, quero ter relação com a China. Eu não quero ter preferência sobre um ou sobre outro. Quem tem que ter preferência são os meus empresários que querem negociar com seus empresários. Mas eu não, eu quero negociar com todo mundo.
Eu quero vender e comprar, vender e comprar, vender e comprar, fazer parceria. É isso que eu queria que você levasse daqui do Brasil. O Brasil tem o papel, pelo tamanho que tem, pela importância econômica que tem, de ser um país indutor.
Eu digo sempre, a palavra não é correta, generosa, mas eu digo que o Brasil tem que ser generoso. O Brasil não pode disputar cargo com os nossos irmãos da América Latina. “Ah, um cargozinho na OEA o Brasil quer. Um cargozinho…”. O Brasil não tem que disputar. O Brasil, por si só, já é grande. O Brasil não precisa dessa disputa, o Brasil precisa apoiar que as coisas sejam feitas pelas melhores pessoas possíveis.
Por isso, Boric, você está convidado a vir para os BRICS aqui em julho deste ano. Acho que você deveria ir para a China, agora na reunião com a CELAC. Vamos tentar ver se a gente consegue, com a amizade do Celso na China, conseguir que você tenha uma bilateral com o Xi Jinping, para você mostrar que um país não é grande por causa da sua extensão territorial, o país é grande pelo dinamismo da sua política, da sua cultura, do seu povo, e o Chile tem muito de grandeza.
Você sabe que o Brasil é eternamente grato ao Chile, por tudo que o Chile fez aos brasileiros perseguidos pelo regime autoritário em 1964. Por isso, querido companheiro Boric, quero que você saia daqui do Brasil, depois do almoço, depois do debate com os empresários, com a certeza de que a nossa relação nunca mais será a mesma. Nós temos a obrigação de fazer com que ela seja melhor, melhor e melhor.
Muito obrigado, querido.