Pronunciamento do presidente Lula na 2ª Reunião “Em Defesa da Democracia, Combatendo Extremismos”
Eu aprendi que a única forma de falar o tempo necessário é falar por escrito, porque senão a gente fala demais. E nós, latino-americanos, temos o defeito de falar um pouco demais. Mas eu não vou ler o meu discurso. Eu queria, Boric [Gabriel, presidente do Chile], contar uma pequena história e que você, por favor, quando chegar os quatro minutos, pode me interromper.
Eu queria falar um pouco de democracia, que é o que está em jogo para o futuro da humanidade, porque somente a democracia será capaz de reconstruir o multilateralismo e reconstruir a harmonia entre os seres humanos e a civilidade entre a relação dos Estados. Eu vou completar 80 anos dia 27 de outubro. Faço política desde os 24 anos de idade e comecei fazendo política sem ser político.
Eu tinha muito orgulho de dizer que eu não gostava de política e não gostava de quem gostava de política. Eu achava que isso era o máximo. Eu não sabia que era pura ignorância minha, porque a desgraça de quem não gosta de política é que é governado por quem gosta. E se quem gosta pensa diferente da gente, a gente nunca vai ter o governo que sonhamos ter.
E eu descobri que era necessário fazer política sem ler nenhuma palavra sobre leninismo, sobre marxismo, sobre maoísmo. Eu não tenho a tradição e a cultura de ser um militante de esquerda tradicional. Eu era simplesmente um metalúrgico, com 23 anos de idade, que gostava muito de futebol. E, por acaso, eu fui para o sindicato. Jamais imaginei ir para o sindicato, jamais imaginei ir para a política e, por acaso, eu criei um partido político.
E por que eu criei um partido político? Porque o governo militar brasileiro, em 1978, queria criar uma lei proibindo determinadas categorias de trabalhadores de fazerem greve. E eu fui a Brasília me manifestar na Câmara dos Deputados contra a aprovação daquela lei. E lá eu fiz a grande descoberta da minha vida. Eu descobri que não tinha trabalhadores no Congresso Nacional.
E aí eu voltei para casa pensando: “como é que eu, um operário, quero que votem leis favoráveis à classe trabalhadora, se não tem trabalhador no Congresso Nacional?”. Foi essa a grande descoberta que eu fiz na vida e foi daí que eu criei um partido político. E o meu partido político, com apenas oito anos, disputou a primeira eleição presidencial. Eu achava que era humanamente impossível um operário chegar à Presidência da República pelo voto.
Em 1989, eu descobri que era possível, sim, porque eu disputei com todos os medalhões da política brasileira, todos os figurões, e eu, um simples metalúrgico, fui o segundo colocado. E fui para o segundo turno e tive 47% dos votos. A partir dessa votação, eu convoquei uma reunião chamada Fórum de São Paulo.
Convoquei toda a esquerda latino-americana para dizer para eles que era possível, sim, através do uso da organização dos Trabalhadores, a gente chegar à Presidência da República. E foi assim que nós criamos o Fórum de São Paulo. Só para vocês terem ideia, da República Dominicana tinha 15 organizações de esquerda. A Argentina tinha 20 organizações de esquerda e ninguém falava com ninguém. Todo mundo era inimigo de todo mundo.
A única coisa que uniu os argentinos era o Maradona [Diego Armando, ex-jogador de futebol]. Ninguém mais unia. E aí nós discutimos a necessidade de todo mundo voltar a fazer política. E a minha experiência, qual é, Boric? A minha experiência é que eu fui o segundo colocado em 1989, eu fui o segundo colocado em 1994, eu fui o segundo colocado em 1998, eu fui o primeiro em 2002, eu fui o primeiro em 2006, fomos o primeiro em 2010, fomos o primeiro em 2014, fomos o segundo em 2018, quando eu não pude ser candidato, e fomos o primeiro quando eu voltei em 2022.
O que nós temos que fazer para garantir a democracia? Você, eu, Yamandú [Orsi, presidente do Uruguai], o Pedro Sánchez [presidente do Governo da Espanha] e todos nós precisamos acordar todo dia e perguntar o que a gente vai fazer pela democracia. Quando for dormir à noite, encosta a cabeça no travesseiro e se pergunte o que você fez durante o dia para fortalecer a democracia.
Com quantas pessoas você falou de democracia? Com quantas pessoas você falou da necessidade da organização popular? Com quantas pessoas você chamou para se organizar? Porque o meu partido, quando foi criado, a gente tinha núcleo de categoria, a gente tinha núcleo por bairro, tinha núcleo por vila, tinha núcleo por local de trabalho, por local de estudo.
Era a sociedade civil organizada no seu local de moradia, no seu local de trabalho, que fazia com que a democracia pudesse vencer. Eu pergunto o que é que nós fazemos hoje? Vamos botar a mão na consciência, todos nós que estamos aqui, o que é que nós fizemos ontem pela democracia? Com quantas pessoas nós falamos de democracia? Com quantas pessoas nós falamos de organização popular? Com quantas pessoas nós falamos de organização por bairro, por local de moradia, por local de estudo, por local de trabalho?
A verdade é que nós não falamos. E se nós não falamos, nós não organizamos. E se nós não organizamos, a democracia perdeu. O que me inquieta hoje, companheiro Boric, é saber o seguinte, e vou terminar com essa indagação. O que me importa hoje é a gente responder, para nós mesmos, onde é que os democratas erraram? Onde é e o momento que a esquerda errou?
Por que é que nós permitimos que a extrema-direita crescesse com a força que está crescendo? É virtude deles ou é incompetência nossa? Vamos responder para nós mesmos, o que é que nós deixamos de fazer para fortalecer a democracia? Onde é que nós erramos? O que é que eu fiz como presidente da República para fortalecer a organização popular e social?
Porque, muitas vezes, a gente ganha as eleições com discurso de esquerda, e quando a gente começa a governar, a gente atende muito mais os interesses dos nossos inimigos do que dos nossos amigos. Muitas vezes, a gente governa dando resposta ao que a imprensa publica sobre nós, à cobrança do mercado, à necessidade de contentar o mercado, à necessidade de contentar os adversários e, muitas vezes, os nossos eleitores que foram para a rua, que apanharam, que foram achincalhados, são considerados por nós sectários e radicais, e a gente começa a não dar atenção a eles e dar atenção àqueles que falam bem da gente.
Esse é o fracasso da democracia. O que é que nós deixamos de fazer? E eu acho que nós deixamos de fazer muitas coisas que, num segundo momento, eu pretendo dizer o que é que nós deixamos de fazer. Então eu penso que, antes da gente procurar a virtude do extremismo de direita, nós temos que procurar os erros que a democracia cometeu na relação com a sociedade civil.
Como é que nós estamos exercendo a democracia nos nossos países? Se a gente encontrar essa resposta, a gente volta a vencer a direita. Se a gente não encontrar a resposta, a gente vai continuar sendo sufocado pelo negacionismo, pelo extremismo e pelo discurso fascista que nós estamos vendo agora.
É isso. Obrigado.