Pronunciamento do presidente Lula durante cerimônia de abertura da 5ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial
Bem, primeiro, boa noite.
Obrigado por vocês fazerem a diferença nesta luta de emancipação do povo negro brasileiro.
Eu, sinceramente, acho que nós estamos vivendo um momento muito importante no nosso país. Muitas vezes, eu acho que a gente precisa fazer uma reflexão de onde a gente estava em 2003 ou 2005, quando fizemos a primeira Conferência, e onde nós chegamos agora.
Com o esforço de cada um de vocês, com o esforço de cada companheiro que participou pela CEPIR [Conferência Estadual de Promoção da Igualdade Racial], depois pelo Ministério [da Igualdade Racial]. E eu acho que é muito importante a gente fazer uma reflexão da luta que a gente vem travando, do dia que a gente nasceu até quando a gente tiver força.
Eu quero cumprimentar os meus ministros que estão aqui presentes. A querida companheira Anielle [Franco, ministra da Igualdade Racial], a querida companheira Macaé [Evaristo, ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania], a querida companheira Marina [Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima], o querido companheiro Camilo Santana [ministro da Educação], o querido companheiro Wolney Queiroz [ministro da Previdência Social], o querido Paulo Teixeira [ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar], a nossa querida Márcia Lopes [do Ministério] das Mulheres, o nosso querido Márcio Macedo da Secretaria-Geral [da Presidência da República], o senador Paulo Paim, os nossos deputados, a nossa deputada [federal] Benedita da Silva, Dandara [Tonantzin, deputada federal], Denise Pessôa [deputada federal], Daiana Santos [deputada federal], Damião Feliciano [deputado federal], Gisela Simona [deputada federal] e Talíria Petrone [deputada federal].
Quero cumprimentar os prefeitos aqui presentes e dizer para vocês que eu vou ser breve, mas, antes, eu queria que vocês reparassem uma fotografia do que a gente conseguiu fazer nesses últimos anos.
É muito importante que a gente olhe a fotografia que nós ajudamos a construir neste país. O Bolsa Família brasileiro tem 19 milhões e 200 mil famílias beneficiadas. Dessas 19 milhões, 73% são chefiadas por pessoas negras. Ou seja, 14 milhões das pessoas do Bolsa Família. E um terço, 1,3%, composta por indígenas, 239 mil pessoas.
O Pé-de-Meia, de 4 milhões de estudantes beneficiados em 2025, 49% dos beneficiários são meninos e meninas negras: 1,96 milhão. O Prouni [Programa Universidade para Todos], em 2024, teve 170 mil pessoas inscritas, 57% eram as pessoas negras. O Fies [Fundo de Financiamento Estudantil] teve 44 mil pessoas inscritas em 2024, 59,8% eram pessoas negras.
O Sisu teve 264,2 mil vagas ofertadas em 2024, 54% das vagas reservadas para ações afirmativas. Das bolsas do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], são 94 mil bolsas para instituições, 30,7% ocupadas por pessoas negras. Mulheres Mil, 49 mil matrículas, 66% de mulheres negras. No meio ambiente, Bolsa Verde, 63 mil famílias beneficiadas, 90,7% chefiadas por pessoas negras e 2% de famílias chefiadas por indígenas.
Isso é apenas um pouco da fotografia que a gente conseguiu construir. Um dado mais recente: quando a Dilma [Rousseff, ex-presidenta do Brasil] foi ‘impichada’, a gente tinha 18 mil médicos no programa Mais Médicos neste país. Quando nós voltamos, só tinha 12 mil médicos no lugar dos 18 mil. E nós, agora, estamos praticamente com 27 mil médicos e 35% são médicos e médicas negras. No Bolsa Atleta brasileiro, outro programa, 9,9 mil atletas contemplados, 47% de pessoas negras e 3% de indígenas.
Eu estava dando esse dado aqui para vocês, porque vocês percebem que, aos poucos, os lugares que habitualmente a gente visitava e que vocês só encontravam a maioria de brancos, hoje você encontra um pouco da cara brasileira: a cara negra, a cara das pessoas que sentem orgulho, que não querem mais ser consideradas morenas, morena-jambo, querem ser negras, porque se reconhecem como negras e é motivo de orgulho assumir a negritude de cada um.
Esse é o dado mais extraordinário que eu tenho falado para a Anielle, é o dado mais extraordinário. Eu frequentei muito tempo a USP [Universidade de São Paulo], em São Paulo, e a USP, para quem sabe, era uma universidade de pessoas brancas. E hoje, se você for na USP, 50% ou mais são pessoas negras e muita gente da periferia frequentando aquela que é considerada a mais importante universidade deste país. Essa é uma conquista inigualável que eu acho que nós fizemos em um tempo mais curto do que outras conquistas que nós obtivemos.
Conquistamos tudo? Não. Já chegamos ao fim? Não. Nós ainda temos muita coisa para conquistar, mas muita coisa. Não apenas para conquistar aqui dentro do Brasil, mas para conquistar ajudando com que o continente africano também sofra uma reparação da nossa parte com a transferência de conhecimento e tecnologia que a gente pode fazer para aquele país.
Então, eu sou muito grato, Anielle, por essa conferência. Muito grato, porque eu acredito que a gente que é presidente da República, a gente, muitas vezes, pode se sentir pequeno diante da grandeza de vocês. Porque se não fosse a persistência de vocês, se não fosse vocês terem uma causa e levantar, todo dia, enfrentando adversidades, enfrentando preconceitos, enfrentando provocações e se vocês não persistissem, não acreditassem naquilo que vocês sonham, possivelmente a gente não teria feito esta conferência com esta dimensão, porque passamos sete anos com governos que jamais lembraram ou pensaram em fazer uma conferência para ouvir outra vez as mulheres e os homens negros desse país a se manifestarem e a dizer o que querem.
Uma coisa extremamente importante que a gente precisa ter em conta é que nós ainda estamos muito longe de conquistarmos aquilo que a gente sonha conquistar. O preconceito ainda é muito forte no nosso meio. E vocês sabem que o preconceito é uma doença. O preconceito a gente não resolve apenas colocando na Constituição que é crime inafiançável, porque o preconceito, na verdade, está na massa encefálica de muita gente que não quer aprender que nós não podemos sofrer preconceito de cor, porque nós somos gente, independente da cor, nós somos humanos, independente da cor, e nós precisamos nos tratar com respeito, com deferência e com o carinho que todos nós precisamos ser tratados.
E este país ainda está longe, não pense que está perto não, porque ainda está longe. De vez em quando vocês veem nos jornais, vocês veem na matéria, veem na rede digital, que as coisas acontecem nem sempre do jeito que a gente acreditava.
Portanto, minhas queridas companheiras, meus queridos companheiros, eu quero dizer para vocês: feliz é um presidente da República que tem um povo como vocês. Feliz é um presidente da República que tem a capacidade de dizer para vocês: esse é o momento de vocês reclamarem, esse é o momento de vocês reivindicarem, esse é o momento de vocês produzirem a coisa que vocês querem, porque vocês sabem que não faz muito tempo, neste país, a gente não podia nem falar.
Vocês sabem que neste país, há muito tempo, as pessoas eram maltratadas antes de chegar perto de uma universidade, antes de chegar perto de um encontro qualquer, a gente era maltratado — e ainda hoje a gente vive esse tipo de preconceito. Por isso, eu queria dizer para vocês: há exatamente 20 anos, nós estivemos aqui neste mesmo Centro de Convenções. Muitos de vocês não estavam aqui, porque muitos de vocês são muito jovens, e estivemos aqui para a abertura da primeira Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
Naquela ocasião, no terceiro ano do meu primeiro mandato, já havíamos consolidado instrumentos importantes para a promoção da igualdade racial e de enfrentamento ao racismo. Para nós, a promoção da igualdade racial era e segue sendo um compromisso ético, mas também uma diretriz política e econômica de desenvolvimento.
Condição necessária para consolidarmos a democracia em um contexto em que a parcela mais pobre da população, em sua maioria negra, esteve historicamente excluída de seus direitos mais elementares.
O Estado brasileiro não pode ser neutro nessas situações. Ele precisa assegurar a todos os brasileiros e a todas as brasileiras igualdade de oportunidades na busca por melhores condições de vida. É exatamente o que fizemos e o que estamos tentando fazer.
No comecinho daquele primeiro governo, em março de 2003, criamos a Secretaria Especial de Política da Promoção da Igualdade Racial [SEPPIR]. A partir da criação da SEPPIR, começamos a implantar uma série de ações afirmativas. Foram os primeiros passos para transformar o nosso desejo de justiça em políticas públicas efetivas e dar início à reparação de uma dívida histórica.
O Brasil, como vocês sabem, foi a maior potência escravocrata do período colonial e a última nação do planeta a abolir o tráfico humano. Ao longo de cinco séculos, a concentração de riqueza na mão de poucos, com a exclusão social e econômica da população negra, deu origem a um gigantesco abismo social. Esse abismo que nosso governo tomou a decisão de enfrentar.
Queridas amigas e queridos amigos,
As famílias chefiadas por pessoas negras representam 73,3% do conjunto dos beneficiários dos nossos programas sociais. No programa Pé-de-Meia, eu já li para vocês agora, são 4 milhões, mas, na verdade, já passaram mais de 5,5 milhões de estudantes pelo Pé-de-Meia. E, se Deus quiser, a gente está caminhando para que a gente atenda todos os 6 milhões de jovens do ensino médio e não apenas os 4 milhões como estamos atendendo hoje.
Além do recorte racial, nos programas de inclusão, instituímos políticas específicas para a redução da desigualdade de cor, como, por exemplo, o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial; o sistema de cotas para o acesso à universidade, concursos públicos federais e aos cargos comissionados do nosso governo. O programa Brasil Quilombola, aprimorado para Aquilomba Brasil, o último a titulação de territórios quilombolas e muito mais.
Há dois anos, na Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, propusemos a criação de um objetivo de desenvolvimento sustentável, específico para tratar da promoção da igualdade étnico racial no mundo.
Apesar dos obstáculos enfrentados, o Brasil tem avanços que podem servir de exemplo para os demais países. A mudança da cor das universidades brasileiras é uma das faces mais visíveis do Brasil menos desigual que estamos construindo. No Prouni, Fies, Sisu [Sistema de Seleção Unificada], o percentual de negros e negras supera 50% em todos os casos.
Hoje, homens e mulheres negros e negras brilham nas mais diferentes funções. Dos 26,4 mil profissionais do programa Mais Médicos, 34[%] são jovens negros e negras. De um conjunto de 94 mil bolsistas do CNPq, mais de 30% são pesquisadores e pesquisadoras negras e negros deste país.
É preciso dizer que, em todas as conquistas até aqui, estão as digitais de cada uma e de cada um de vocês, que trazem suas vozes e suas lutas para as plenárias regionais e as conferências nacionais. A participação social é a parte essencial do nosso modo de governar e de construir políticas públicas. Seremos tanto mais assertivos, quanto mais considerarmos os anseios, as propostas e as prioridades daqueles e daquelas para as quais as políticas se destinam.
Agradeço a cada um de vocês por estar aqui nesse debate cujo objetivo maior é ajudar o nosso governo a construir um país mais justo e melhor para todos nós. Avançamos muito em nossa caminhada, mas ainda temos um longo caminho a percorrer, especialmente no que diz respeito ao racismo de todos os dias, aqueles que a população negra enfrenta em diferentes frentes.
Há um imaginário que insiste em colocar pessoas negras em um único lugar, normalmente, em um lugar de serviçal, quando não de uma ameaça. Nesse imaginário cruel, um negro dirigindo um carro de luxo só pode ser um motorista ou a serviço do patrão ou alguém que roubou aquele carro. Uma mulher negra numa estação de trabalho, na frente de um computador, só pode ser secretária. Se estiver de pé, deve ser a que serve cafezinho.
Nesse imaginário maluco, racistas, um trabalhador cansado correndo para pegar o último ônibus é suspeito de ter cometido algum assalto. Muitas vezes esse trabalhador leva um tiro e morre, simplesmente porque tinha pressa em voltar para casa e rever a sua querida família. Não podemos naturalizar esses absurdos.
Não podemos achar normal que uma escritora negra convidada de um festival literário seja injustamente acusada de furtar objeto na pousada em que se hospedou. É inconcebível que a sociedade brasileira esteja ainda nesse lugar de preconceito e discriminação. É inaceitável que um ser humano tenha as oportunidades limitadas ou esteja sempre sob suspeita por causa da cor da pele.
É inadmissível que jovens e mulheres negras sejam as maiores vítimas das violências. Não podemos tolerar que jovens negros da periferia continuem a ser alvos preferenciais das forças de repressão. Racismo é crime e é também uma doença que precisa ser erradicada do nosso país.
Só assim, quando todos os brasileiros e brasileiras tiverem as mesmas oportunidades, seremos uma verdadeira democracia. Nossa luta é para que ninguém sofra qualquer tipo de preconceito pela cor da pele, pela orientação sexual, pela fé que professa ou por qualquer outro motivo. É para vivermos numa sociedade igualitária que precisamos seguir lutando.
O governo criando as políticas públicas de promoção da igualdade racial e vocês brigando e nos ensinando e dizendo o que mais precisa ser feito para que cada uma e cada um de vocês possa ser o que quiser e estar onde deseja estar. Tenho certeza de que juntos construiremos as bases de um Brasil mais justo e inclusivo.
Um país em que todos e todas sejam tratados com respeito, igualdade e dignidade. E que a gente possa passar para aquelas pessoas que duvidam do Brasil, de que o Brasil é um país soberano, é um país que só tem um dono e o dono deste país é o povo brasileiro e não aceitamos que quem quer que seja diga o que temos que fazer.
Eu quero terminar meu discurso dizendo para vocês: quando a Benedita da Silva entrou aqui para falar, eu vi alguém gritar “senadora”. Eu não sei o que vai acontecer com a Benedita da Silva, não sei o que ela quer ser, não sei se ela vai ser indicada, mas uma coisa eu vou dizer para vocês: se essa negona for senadora, é a mais bonita senadora deste país e a mais forte representação negra deste país.
Um beijo para vocês e boa conferência.