Bem-estar digital
O bem-estar digital de um usuário é influenciado por diferentes fatores, que extrapolam o aspecto do "tempo de tela". O capítulo Direitos digitais de crianças e adolescentes mostrou como "tempo" é algo importante para os modelos de negócios de muitas plataformas. Contudo, dosar o tempo de permanência nesses espaços ou no uso de tais recursos é apenas um dos passos que podem ser dados para se experimentar o bem-estar digital.
Cultura, valores, autoestima, diagnósticos de saúde, condição de acesso qualitativo a recursos, o design dos produtos ou serviços digitais disponíveis, entre outros, são elementos capazes de afetar os modos de envolvimento de crianças e adolescentes com o mundo digital.
Assim, as evidências científicas e estratégias práticas apresentadas neste material precisam ser consideradas de acordo com as condições da "vida real" das muitas e distintas famílias brasileiras, com especial atenção aos contextos mais vulneráveis.
Esta etapa do Guia é direcionada mais diretamente às pessoas adultas que tomam decisões para as crianças e adolescentes no dia a dia, e faz um convite para que, nesse cenário, se considerem as possibilidades também com estes sujeitos.
Isso não retira a responsabilidade de todos os demais agentes que precisam gerar condições para que, entre riscos e oportunidades, sejam adotadas medidas de segurança digital, garantidos os direitos digitais e promovidas as estratégias de educação digital e midiática necessárias.
Nesses termos, pode-se dizer que o bem-estar digital está mais para um caminho (que vai ganhando novos contornos com o passar do tempo) do que para um destino.
Mediação das Famílias
A ideia de “mediar” tem a ver com “estar entre” e ter parte importante em um processo que flui entre dois outros pontos, de alguém para outro alguém. É daí que vem o termo “mídia” - afinal, são as mídias que dão acesso a informações, serviços, outras pessoas, etc. - e a forma como esses meios organizam suas mensagens muda as experiências.
As famílias também têm um importante papel na mediação das crianças e dos adolescentes com o mundo, inclusive com o mundo digital.
Já se sabe, por exemplo, que o aprendizado e o desenvolvimento estão associados a um uso mediado. É preciso que haja a mediação de um adulto para que o conteúdo, após explicado, faça sentido para a criança.
É importante focar na qualidade do que é oferecido à criança e, ainda, na atenção à própria criança.
É possível que, diante da necessidade de cuidar de tarefas domésticas, ou de descansar, familiares possam recorrer a conteúdos audiovisuais adequados, mesmo para crianças em sua primeira infância, conforme a Classificação Indicativa.
Outro exemplo de uso possível, mesmo para as crianças na primeira infância, é a realização de videochamadas com familiares. Nesse tipo de uso, é importante explicar quem aparece, repetir o que dizem, traduzir o que for mais difícil e descrever o que acontece para que a criança entenda esse momento.
Conforme as crianças crescem, os processos passam a exigir estratégias diferentes, pois precisam se adaptar a situações mais complexas. Assim, é importante atentar para a qualidade daquilo que é oferecido ao adolescente e aos modos como o seu comportamento reflete esse envolvimento com as mídias e os conteúdos.
A mediação realizada por parte da família – mas também da comunidade, da escola e dos pares das crianças e adolescentes – pode assumir contornos mais ativos, restritivos ou de monitoramento.
O debate científico recente vem apontando que a mera proibição e restrição intensa do uso de telas não parece ser uma estratégia eficaz. Orientações restritivas, focadas somente no tempo de tela, parecem surtir pouco efeito prático e não serem seguidas.
Supervisão e Mediação Familiar
A supervisão familiar pode ser entendida como um conjunto de mecanismos que possibilita aos responsáveis diretos por crianças e adolescentes a visualização e/ou restrição do acesso a dispositivos, computadores, sistemas operativos e sites.
A mediação familiar é um conjunto de estratégias adotadas por pais, familiares ou responsáveis com o objetivo de acompanhar e orientar a forma como a criança e o adolescente lidam com os muitos usos possíveis das mídias, levando em consideração aquilo que é valorizado e verbalizado sobre o assunto. Trata-se de uma importante etapa na compreensão e assimilação sobre benefícios e riscos do ambiente digital junto às crianças e adolescentes.
Algumas formas de mediação
Mediação ativa para uso seguro do ambiente digital — Um conjunto de atitudes, que inclui a conversa sobre o conteúdo online que as crianças e os adolescentes acessam e foca em práticas que promovam usos seguros e responsáveis na internet.
Mediação restritiva — Aquela que se refere às ações que indicam regras e limites explícitos para o uso da Internet e dos dispositivos móveis.
Monitoramento — A ação de verificar as atividades online realizadas por crianças e adolescentes após o uso, a exemplo da prática de verificação do histórico do navegador.
A relação de Crianças e Adolescentes com as Telas:
uma responsabilidade compartilhada
As diretrizes baseadas unicamente em tempo de tela foram, em sua maioria, elaboradas numa época em que a mídia dominante era a TV, que era consumida em ambiente coletivo e com programas de duração definida – o que não é o caso de dispositivos digitais de uso individual, como aparelhos celulares. Além disso, esse tipo de diretriz não necessariamente leva em consideração os diferentes contextos de uso e conteúdos exibidos. Por fim, a expectativa de que todas as famílias brasileiras, independentemente de sua configuração e contexto, conseguirão encontrar, sozinhas, alternativas saudáveis para o uso de telas é irreal e pode gerar sentimento de culpa nos familiares e nas pessoas cuidadoras.
Nesse ponto, vale o lembrete às famílias de que envolver-se no processo de mediação não significa responsabilizar-se sozinho por ele. A legislação brasileira registra ser compartilhada a responsabilidade sobre o cuidado para com crianças e adolescentes e implica não só as famílias, mas também governos, escolas, empresas, comunidades e a sociedade como um todo nesse desafio.
Embora seja necessário apontar os riscos do uso de telas, sugerir boas práticas e alternativas, buscando a qualidade das experiências, pode contribuir para potencializar os benefícios das ferramentas tecnológicas.
Os problemas indicados neste Guia estão relacionados aos usos excessivos, comprometedores ou não supervisionados de ferramentas digitais. Para evitar esses usos não saudáveis, familiares, pessoas cuidadoras e responsáveis podem estabelecer regras ou combinados claros de utilização, que, de preferência, não sejam impostos de forma desrespeitosa, mas justificados desde cedo às crianças e adolescentes, que são diretamente afetados por eles.
Algumas plataformas digitais oferecem ferramentas de supervisão familiar para seus produtos e serviços. Geralmente anunciadas como ferramentas de “controle parental”, esses recursos não oferecem controle, propriamente dito, sobre os usos feitos pelos usuários, mas podem auxiliar na gestão do tempo e dos conteúdos acessados.
Assim, inclusive em função das limitações das próprias ferramentas para o exercício da mediação familiar, não é suficiente pensar que a ativação desses recursos equivale à experiência de acompanhamento necessária.
Há evidências de que ferramentas, tanto de verificação etária quanto de “controle parental”, podem ser fáceis de burlar ou estarem em desacordo com os critérios dos responsáveis, criando uma falsa sensação de segurança, caso não sejam acompanhadas de muito diálogo e maior envolvimento dos familiares.
Formas de verificação etária em dispositivos digitais
Para que crianças e adolescentes tenham acesso a conteúdos próprios à idade, conforme o princípio da autonomia progressiva e as regras do Estatuto da Criança e do Adolescente, a questão da verificação da idade é essencial para que se identifique quem está acessando o serviço.
Há várias formas disponíveis atualmente para estabelecer a idade do usuário de um aplicativo ou plataforma. Algumas podem se basear na autodeclaração – o preenchimento de uma data de nascimento, por exemplo –, que traz consigo o desafio da facilidade com que pode ser burlado. Outras se baseiam na necessidade de se fornecer outros tipos de dados pessoais, como biométricos ou documentação civil, o que pode envolver o tratamento de dados pessoais sensíveis.
Existem outras tecnologias que permitem identificar, com razoável grau de confiança, a faixa etária do usuário de serviços digitais, com base, por exemplo, em seus padrões de uso e visualização de conteúdos. Isso é feito, inclusive, por meio de inteligência artificial ou conforme a titularidade de cartões de crédito ou a validação por meio de outras plataformas. Vale citar que, também nesses casos, as informações de dados pessoais dos usuários são acionadas.
Sempre tendo em vista o direito à privacidade e à proteção de dados pessoais, crianças e adolescentes não devem ser obrigados a fornecer mais dados do que o estritamente necessário para comprovar sua idade.
Além disso, é fundamental que aplicações e desenvolvedores de serviços digitais que possam ser utilizados por crianças e adolescentes garantam a implementação e o funcionamento de mecanismos de verificação etária que sejam proporcionais aos riscos, adequados, transparentes, de fácil uso e que respeitem a legislação brasileira.
Importa considerar, portanto, que diante das lacunas presentes nos mecanismos de verificação etária, que apontam para alguns métodos como mais invasivos do que outros – em termos dos dados pessoais tratados — a escolha sobre qual método utilizar deve estar pautada no grau de risco que o produto ou serviço oferece quando acessado por uma criança ou adolescente. Nesses termos, faz mais sentido adotar um método que demanda o tratamento de mais dados sensíveis para um site de pornografia do que para assinar um boletim informativo desses que se recebe por e-mail, por exemplo.
O uso dito problemático ou excessivo não é um problema exclusivo de crianças, adolescentes ou núcleos familiares. A Constituição é explícita ao determinar que se trata de uma responsabilidade também do Estado, de empresas, da sociedade.
O Marco Civil da Internet garante aos usuários brasileiros a livre escolha de programas para “exercício do controle parental de conteúdo entendido por ele como impróprio a seus filhos menores”. Por sua vez, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais estabelece que uma das hipóteses do tratamento de dados pessoais de crianças é o consentimento, e aponta que, quando utilizado, este “deverá ser realizado com o consentimento específico e em destaque dado por pelo menos um dos pais ou pelo responsável legal”.
Um ponto de observação está no fato de que mães, pais, familiares e pessoas cuidadoras não necessariamente têm tempo, habilidades digitais e conhecimento que permitam pleno acesso ou capacidade para gerenciar tais ferramentas – em especial nos moldes do que é recomendado pela indústria nos dias atuais –, ou mesmo para entender como funcionam os espaços onde seus filhos navegam.
Um exemplo disso é o fenômeno conhecido como sharenting. O termo é uma junção de duas palavras do idioma inglês: share (compartilhar) e parenting (algo como parentalidade, ou o cuidado de pais e mães sobre seus/suas filhos/filhas). Pautada no constante compartilhamento das imagens e informações de crianças ou adolescentes por seus responsáveis, em plataformas e aplicativos conectados, trata-se de uma prática que ignora os riscos relacionados ao uso de dados pessoais infantojuvenis, com impactos de ampla proporção, em curto, médio e longo prazos, na vida destes sujeitos.
O sharenting tem sido praticado por famosos e anônimos espalhados pelo planeta, assim como por familiares e outros adultos ou instituições de referência da criança/adolescente – como escolas e outras comunidades de pertencimento – sem a devida atenção ou reflexão. Por vezes, as intenções são boas, mas as consequências podem ser danosas. E isto não está claro para muitos desses atores.
Um dos pontos de atenção é a proteção de dados de crianças e adolescentes. Nem sempre se percebe o fluxo contínuo e sem precedentes de informações pessoais e comportamentais que estão sendo coletadas, analisadas, manipuladas e mercantilizadas. Isso não é resultado somente do engajamento de crianças e adolescentes com as mídias digitais, mas também do compartilhamento de conteúdos postados por familiares e responsáveis, ou cedidos através de dispositivos conectados no ambiente doméstico ou escolar.
Postagens que registram eventos de família, capturas de imagens por babás eletrônicas conectadas, músicas solicitadas a assistentes virtuais domésticos ou mesmo a seleção de recursos como jogos digitais educativos devem ser observados, entre outros, como fontes de informação sobre o comportamento dos usuários – entre eles crianças e adolescentes – que viabilizam análises com valor econômico.
Familiares, responsáveis e pessoas cuidadoras também precisam avaliar como usam as telas, reconhecendo-se como exemplo para crianças e adolescentes.
Estudos mostram que o uso excessivo de telas pelos familiares adultos, o uso da tela na hora das refeições pela família e o uso da tela no quarto estão associados ao maior tempo de tela dos adolescentes e ao uso problemático de mídias sociais, videogames e telefones celulares.
Da mesma forma, o mero uso de telas pelos pais, para controlar o comportamento como recompensa ou punição, é menos eficaz que o monitoramento familiar bem conduzido e o acordo sobre limites definidos em conjunto.
Assim, na medida do possível, as pessoas cuidadoras podem auxiliar melhor quando conhecem mais sobre os recursos a serem utilizados.
O que considerar antes de permitir o acesso ou baixar aplicativos para o uso por crianças e adolescentes
Qual a indicação de idade para uso do aplicativo? (Essa informação está disponível no momento de baixar o app)
Quais as configurações de proteção ativadas nos termos da plataforma?
Nele aparecem anúncios publicitários durante o uso?
O aplicativo se pauta exclusivamente em atividades com sistema de reforço ou recompensas?
O aplicativo inclui pagamentos como requisito para a obtenção de algum recurso?
O aplicativo colabora para algum aprendizado interessante?
O aplicativo contém cenas ou elementos fortes de violência (por exemplo, mortes, ataques violentos)? A violência é apresentada de forma naturalizada ou sem consequências negativas a ela associadas?
O aplicativo tem padrões que estimulam o uso prolongado ou problemático, tais como reprodução automática, conteúdos acelerados e linha do tempo infinita?
Também é fortemente recomendado que seja criado um plano familiar para uso das mídias ou "combinados". Trata-se de um conjunto de decisões e definições que não têm por foco a proibição, mas a consideração sobre o que é possível dentro da realidade de cada família.
A implementação de um plano de uso de mídias tende a ser mais bem-sucedida quando as regras são claras, consistentes e construídas com a participação das crianças e adolescentes, seus familiares e responsáveis – o que é especialmente relevante para adolescentes, que têm mais autonomia à medida que passam mais tempo sem a supervisão de um adulto.
Isso também foi refletido nos relatos de crianças e adolescentes ouvidos para a formulação deste Guia, nos quais a percepção do valor das regras oscila entre as faixas etárias.
Crianças apresentaram consciência sobre possíveis perigos da internet e das telas, por isso concordaram com um monitoramento mais próximo, referindo se sentirem mais seguras assim. Já os adolescentes, à medida que crescem, afirmam necessitar cada vez mais de espaço e privacidade, por isso podem se sentir invadidos dependendo da regra, mas também porque se consideram capazes de fazer a gestão do próprio uso.
Todos os fatores mencionados anteriormente podem auxiliar na decisão sobre como dar acesso ao ambiente digital para crianças e adolescentes, e, em que medida, isso implica (ou não) na posse de dispositivos do tipo smartphone.
Este Guia recomenda que a posse de smartphones (na condição de dispositivo portátil amplamente conectado) se dê apenas após os 12 anos de idade e reforça a necessidade de que vários critérios sejam observados para este tipo de decisão.
Aplicativos de mensagens
Os aplicativos ou recursos de mensagem (ou mensageria) são aqueles que permitem a comunicação entre usuários através de mensagens de texto, vídeo ou áudio enviados para chats privados.
Estes usuários podem ser tanto pessoas como empresas, ou mesmo chatbots que passam adiante mensagens diversas. É importante atentar para as mensagens de caráter comercial, que podem configurar riscos de abusividade, golpes ou compartilhamento de dados pessoais; bem como para aquelas de caráter radical, que podem fazer menção a conteúdos extremistas (de incitação ao ódio e à intolerância).
Ao mesmo tempo, importa compreender que esses também são espaços significativos para a interação social entre as pessoas nos dias atuais. E as crianças e adolescentes não estão fora dessa realidade. Segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2023, 78% das pessoas com idade entre 9 e 17 anos utilizam o WhatsApp no país.
Assim, um desafio adicional se coloca para os processos de mediação familiar: o acompanhamento das experiências em fóruns privados de trocas de mensagens, levando em consideração a possibilidade de exposição a vínculos e conteúdos potencialmente danosos (como a interação com usuários adultos desconhecidos, o acesso a conteúdos extremistas, fraudulentos ou inapropriados), mas também a legitimidade e privacidade das experiências relacionais, em especial para os adolescentes.
Sobrecarga materna ou familiar
O governo federal realizou uma consulta pública sobre o "Uso de Telas por Crianças e Adolescentes" – oportunidade em que várias famílias brasileiras se manifestaram sobre sua experiência na lida com as tecnologias.
A realidade de consumo de telas por crianças e adolescentes varia entre os diferentes lares brasileiros, e é comum que as famílias sejam as principais responsabilizadas pelas consequências da relação entre o público infantojuvenil e as mídias.
Mais que isso, adotar estratégias de acompanhamento e mediação torna-se delicado para algumas realidades familiares e parece impraticável para outras.
Aquelas famílias com menor rede de apoio em relação aos cuidados com as crianças e os adolescentes tendem a oferecer mais as telas, em especial para conseguir desempenhar outras tarefas, como autocuidado e o trabalho de cuidado doméstico. Frequentemente as telas desempenham a função de “babá” para o auxílio no cuidado à criança.
A realidade brasileira conta com muitos arranjos familiares chefiados por mães solo. Além disso, a insuficiência de vagas em creches públicas, o abandono paterno, a falta de rede de apoio e a ausência de espaços verdes seguros para o lazer, entre outros, são fatores que podem contribuir para que se recorra às telas para tornar possível a prática de uma atividade profissional ou do descanso.
As recomendações aqui presentes, bem como as ferramentas oferecidas pela indústria, não devem servir para despertar angústias, sentimento de culpa ou para que pessoas cuidadoras e responsáveis se sintam solitários nessa difícil tarefa. Antes, importa comunicar às famílias sobre como também outros atores são responsáveis por prover recursos, proteger integralmente e promover os direitos de crianças e adolescentes, conforme estabelecido pelo artigo 227 da Constituição Federal brasileira.
Regulações e recomendações: a experiência global
Quando as práticas cotidianas de plataformas digitais estão vinculadas a violações de direitos que se colocam para os seus usuários mais vulneráveis, o bem-estar de crianças e adolescentes passa a depender diretamente dos parâmetros de qualidade aplicados ao desempenho de tais atividades.
Em outras palavras, a qualidade das experiências que se colocam para crianças e adolescentes no ambiente digital passa, também, por uma questão de regulação, ou das leis que disciplinam a internet em cada país.
Muitos países têm adotado regras que orientam as condutas e equilibram possíveis movimentos predatórios, que comprometem o melhor interesse da criança e do adolescente. Isso tem sido feito via estratégias de regulação e complementado através de iniciativas de recomendação.
Recentemente, diversos países reforçaram seus marcos normativos regulatórios para serviços digitais, em relação à proteção de direitos de crianças e adolescentes.
A União Europeia aprovou em 2022 a Lei de Serviços Digitais, que traz uma série de obrigações de transparência e dever de cuidado para as plataformas digitais que operam naquele espaço. A lei amplia as responsabilidades das plataformas digitais sobre conteúdos postados, proíbe expressamente a publicidade direcionada às crianças e adolescentes, os padrões ocultos e a utilização de dados pessoais sensíveis para fins de publicidade direcionada. As plataformas ficam, inclusive, obrigadas a avaliar possíveis riscos contra os direitos de crianças e adolescentes e a adotar medidas para reduzi-los, tais como implementar ferramentas de supervisão familiar, de denúncia de abusos e de verificação etária.
Em 2023, o Reino Unido aprovou sua Lei de Segurança Online, que aumenta as responsabilidades de plataformas digitais que possam ser acessadas por crianças e adolescentes, exigindo que passem a praticar o “dever de cuidado”. A lei também traz uma série de outros deveres, como a obrigação de avaliar e reduzir riscos, oferecer canais efetivos para a denúncia de abusos e estabelecer a “segurança por design” como padrão para aplicações que possam ser usadas por crianças e adolescentes, isto é, considerar a segurança para as crianças e adolescentes durante todo o ciclo de vida de um produto ou serviço digital, incluindo concepção, desenvolvimento e implantação.
Em novembro de 2024, o Parlamento da Austrália aprovou uma lei que proíbe adolescentes com menos de 16 anos de terem contas próprias em redes sociais, exigindo que as plataformas digitais adotem soluções razoáveis de verificação etária para garantir a efetividade dessa medida.
Desde 2021, a China adotou uma lei de proteção de crianças e adolescentes na internet, que exige que as empresas sigam medidas como disponibilizar canais de denúncia, e determina que redes sociais, jogos digitais e outras aplicações não utilizem mecanismos que induzam ao uso excessivo.
A título de comparação, embora tenham sido aprovadas nos últimos anos diversas leis para criminalizar condutas no ambiente digital, falta ainda ao Brasil uma legislação robusta e abrangente, com foco na proteção dos direitos de crianças e adolescentes na internet.
Além das normas que regulam serviços digitais, há todo um conjunto de recomendações oficiais – vindas de governos, autoridades de saúde ou de associações de especialistas da área médica ou psicológica – que, por serem baseadas em evidências, são referências importantes para as diretrizes oficiais de uso de telas e dispositivos digitais por crianças e adolescentes.
São diretrizes em constante evolução. Por exemplo, um dos temas ainda em debate é a idade a partir da qual as redes sociais, tal como funcionam atualmente, seriam seguras para o uso.
Nos Estados Unidos, o documento de recomendação de 2023, da maior autoridade pública de saúde, chegou a afirmar que, “neste momento, ainda não temos evidências suficientes para determinar se as redes sociais são suficientemente seguras para as crianças e adolescentes”.
Em abril de 2024, uma comissão de especialistas entregou um relatório de recomendações ao governo francês, alertando que o uso excessivo de redes sociais pode ser um fator de risco para depressão e ansiedade em casos de vulnerabilidades pré-existentes.
Em relação ao tempo de telas por crianças e adolescentes, muitos países, como Cuba e Itália, seguem a regra geral da Organização Mundial da Saúde, apresentada na tabela a seguir, que emprega recortes etários, ao passo que outros, como a Colômbia, não adotam limites específicos.
Vale destacar que as recomendações por vezes tratam as telas ou mídias digitais, de forma geral, como objeto da recomendação, mas também há orientações específicas para certos usos, a exemplo da introdução do acesso à internet ou o uso de redes sociais.
A tabela que aparece na sequência sintetiza um comparativo de alguns documentos internacionais referentes às orientações para uso de dispositivos digitais por crianças e adolescentes:
Comparativo internacional
recomendações de tempo ou tipo de uso por faixa etária
Diretrizes da OMS sobre atividade física, comportamento sedentário e sono para crianças com menos de 5 anos
Orientações:
» Até 2 anos: zero tela; não devem ser mantidos imobilizados por mais de 1h por vez, em carrinhos de bebê, cadeiras, etc.
» De 2-4 anos: tempo sedentário em telas não deve ser superior a 1h; quanto menos, melhor.
"Menos Telas, Mais Saúde", da Sociedade Brasileira de Pediatria
Orientações:
» Até 2 anos: evitar exposição a telas, sem necessidade.
» Entre 2 e 4 anos: limitar o tempo diário de telas ao máximo de 1h/dia, sempre com supervisão de pais, pessoas cuidadoras e responsáveis.
» Entre 6 e 10 anos: limitar o tempo diário de telas ao máximo de 1h-2h/dia, sempre com supervisão de pais, pessoas cuidadoras e responsáveis.
» Adolescentes (entre 11 e 17 anos): limitar o tempo de telas e jogos de videogames a 2-3h/dia, e nunca deixar “virar a noite” jogando.
» Não permitir que as crianças e adolescentes fiquem isolados nos quartos com televisão, computador, tablet, celular, smartphones ou com uso de webcam; estimular o uso nos locais comuns da casa.
» Para todas as idades: nada de telas durante as refeições e desconectar 1-2h antes de dormir.
"Diretrizes de movimento de 24 horas do nascimento aos 5 anos"
Orientações:
» Até 1 ano: evitar exposição a telas, com ao menos 30 minutos diários de atividades com movimento.
» Com 1 ou 2 anos: evitar exposição a telas, com ao menos 180 minutos diários de atividades com movimento.
» Entre 3 e 5 anos: máximo de 1h diária de telas, com ao menos 60 minutos diários de atividades com movimento intenso.
"Bebês, crianças, adolescentes e telas: o que há de novo?", da Sociedade Argentina de Pediatria
Orientações:
» Até 18 meses: zero tela.
» De 18 a 24 meses: usar telas selecionando conteúdos com cuidado e sob supervisão.
» De 3 a 5 anos: não usar telas durante as refeições, no horário de dormir ou para a finalidade de acalmar a criança; evitar conteúdos violentos; tecnologia não deve substituir outras atividades, inclusive ao ar livre.
» De 5 a 18 anos: estabelecer limites de acordo com o tempo de uso de todos os tipos de dispositivos permitidos, deixando um “tempo protegido” para a atividade física regular e um descanso adequado; estabelecer área na residência livre de telas; fazer plano de uso familiar.
"Tempo de tela e crianças em idade pré-escolar: promovendo saúde e desenvolvimento em um mundo digital", da Sociedade Canadense de Pediatria
Orientações:
» Até 2 anos: zero tela, exceto o bate-papo por vídeo com adultos familiares.
» De 2 a 5 anos: limitar a 1h ou menos por dia.
» Manter horários diários sem tela, especialmente para refeições em família.
» Evitar telas por pelo menos 1h antes de dormir.
"Além do tempo de tela: um guia para os pais sobre o uso das mídias", da Associação Americana de Pediatria
Orientações:
» Até 2 anos: uso de mídias deve ser muito limitado e somente quando um adulto estiver junto, para conversar e ensinar. A partir de 18 meses, se for introduzir mídia digital, escolher programação de alta qualidade, e ficar junto durante o uso.
» De 2 a 5 anos: até 1h diária, desde que mídia interativa, educativa e não violenta, conjugando com outras atividades.
» A partir de 5 anos: sempre com supervisão parental, garantindo que o uso da mídia não substitua outras atividades importantes, como dormir, passar tempo com a família e fazer exercícios.
“Recomendação de Saúde sobre o Uso de Mídias Sociais na Adolescência”, da Associação Psicológica Americana
Orientações:
» Afirma que o uso das redes sociais não é, por si só, benéfico ou prejudicial. Na maioria dos casos, os efeitos das redes sociais dependem das características pessoais e psicológicas e das circunstâncias sociais dos próprios adolescentes. Em geral, os riscos potenciais são maiores no início da adolescência do que no final dela e, por isso, recomendam supervisão próxima, especialmente entre 10 e 14 anos.
“Saúde e segurança online para crianças e jovens: melhores práticas para famílias e orientação para a indústria”, do governo federal dos EUA
Orientações:
» Não traz sugestão de limitação de tempo de telas, mas orienta pais, mães e cuidadores a criarem planos de mídia familiares, equilibrar tempo de telas com outras atividades, a dialogar e a exercer a supervisão parental e a dar o exemplo mediante o uso moderado de telas.
“Mídias Sociais e Saúde Mental Juvenil”, Recomendações do Cirurgião-Geral dos EUA
Orientações:
» Sustenta que, por ser a adolescência um período especialmente vulnerável de desenvolvimento cerebral, a exposição nas redes sociais nessa idade merece cuidados redobrados. Afirma que não deve recair apenas sobre as famílias o zelo pelo bem-estar online de crianças e adolescentes, exigindo maior envolvimento das empresas de tecnologia e do Poder Público.
“Diretrizes 3-6-9-12”, elaboradas por grupo de especialistas
Orientações:
» Até 3 anos: priorizar o brincar ou a leitura com a criança, em vez das telas.
» De 3 a 6 anos: fixar regras claras para tempo de uso e respeitar a classificação indicativa; nada de dispositivos digitais próprios (inclusive tablets e games) antes dos 6 anos.
» De 6 a 9 anos: iniciar lições sobre o uso crítico da internet; predeterminar tempo de dispositivos digitais para a criança; não usar durante as refeições, na hora de dormir ou para acalmar a criança; até essa idade, não usar TV ou dispositivos digitais no quarto, mas somente nas áreas comuns da casa.
» De 9 a 12 anos: discutir o melhor momento de ter a posse de celular próprio, sendo que, quanto mais tarde, melhor; supervisionar a navegação na internet.
» Depois dos 12 anos: permitir uso da internet, mas discutir questões como pornografia e assédio online; não utilizar dispositivos no período noturno, e somente em horários predeterminados.
Relatório de especialistas “Crianças e Telas: Em busca do tempo perdido”, encomendado pelo governo francês
Orientações:
Organizar uma progressão de usos da tela e do digital entre as crianças e adolescentes de acordo com sua idade:
» Antes dos 11 anos: sem telefone celular;
» A partir dos 11 anos: telefone celular sem conexão à internet;
» A partir dos 13 anos: telefone celular conectado, mas sem acesso a redes sociais ou conteúdos ilegais;
» A partir dos 15 anos: acesso adicional a redes sociais “éticas”.
Recomendações da Academia Indiana de Pediatria
Orientações:
» Até 2 anos: zero tela. Celulares não devem ser usados para acalmar ou facilitar alimentação da criança.
» De 2 a 5 anos: máximo de 1h de telas por dia, sempre com acompanhamento parental.
» De 5 a 10 anos: máximo de 2h de telas por dia, preferencialmente com fins educativos, sem aparelho celular próprio.
» De 10 a 18 anos: uso sempre com supervisão parental e educação midiática, garantindo 1h de atividade física ao ar livre e 8-9h diárias de sono.
Recomendações do Colégio Real de Pediatria e Saúde Infantil. “Os impactos do tempo de tela na saúde: um guia para médicos e pais”
Orientações:
» Afirma que não há evidências consistentes de benefícios para a saúde ou o bem-estar ligados ao tempo de tela. Ao mesmo tempo, diz que as decisões familiares sobre tempo de uso devem levar em conta as necessidades de desenvolvimento, físicas e de sono das crianças, buscando um uso equilibrado, com supervisão parental e que garanta horários saudáveis de dormir e de outras atividades.
Observa-se que tem sido frequente não estipular faixas etárias restritas, mas orientações para se levar em conta as características do processo de desenvolvimento de crianças e adolescentes e fazer a introdução de dispositivos digitais com supervisão familiar.
As recomendações mais recentes nem sempre estabelecem um limite diário de tempo de uso. Isso se relaciona com um questionamento na literatura especializada sobre a ideia de concentrar recomendações apenas no “tempo de telas”, pois, embora seja fácil de medir e orientar, corre-se o risco de deixar de lado o quanto é importante considerar os contextos de uso e conteúdos consumidos.
De todo modo, esse comparativo internacional aponta para algumas recomendações gerais que são comuns aos diferentes países e entidades que fazem recomendações:
- O uso de telas e dispositivos digitais deve ser evitado para bebês (até 2 anos), dando-se prioridade a outras formas de interação e ao brincar;
- O uso de telas e dispositivos digitais é admissível na infância, desde que não interfira em outras atividades essenciais ao desenvolvimento, como brincadeiras, atividades ao ar livre, horários de sono, momento das refeições, contato com livros e materiais educativos e interações familiares face a face;
- O acesso à internet e em particular o uso de redes sociais deve se dar de forma progressiva, sempre mediante acompanhamento familiar, especialmente na puberdade ou início da adolescência, quando a vulnerabilidade é maior.
Como não há uma uniformidade entre as recomendações oficiais e os vários tipos de uso – tratando em conjunto o consumo de mídias tradicionais como TV, os conteúdos educativos ou não, ao lado de novas mídias digitais, jogos digitais, etc. – observa-se que se trata de recomendações que ainda se beneficiarão de mais pesquisas científicas e que estão em constante evolução.
Chama atenção, porém, que as orientações específicas sobre o uso de redes sociais, que foram analisadas, direcionam-se somente a adolescentes. Essa prática está alinhada com o fato de que boa parte dessas redes adota, como termos e políticas de uso, a proibição de acesso por crianças. Isso parece refletir um relativo consenso entre governos, indústria e comunidade científica de que a maioria das redes sociais não foram desenvolvidas para serem usadas por crianças.
O quadro a seguir resume esse conjunto de recomendações baseadas em evidências científicas por faixa etária. Vale destacar que cada criança ou adolescente tem uma trajetória de desenvolvimento própria e que esses recortes podem variar, inclusive em famílias onde mais de uma criança ou adolescente de diferentes idades convivam entre si.