Direitos digitais de crianças e adolescentes
Toda a legislação usada como referência para este Guia considera crianças e adolescentes como sujeitos cujos direitos são orientados pelos princípios de proteção integral e autonomia progressiva. Pessoas cujas identidades também são moldadas pelas experiências com as mídias. Assim, o direito à comunicação que se coloca para esse público está ligado à possibilidade de participação social, e de acesso a outros direitos, que precisam ser garantidos de forma conjunta, com foco no melhor interesse de tais sujeitos.
A absoluta prioridade dada às crianças e adolescentes brasileiros aparece de modo explícito no artigo 227 da Constituição Federal e orienta o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) na definição dos direitos fundamentais desse grupo, para o qual estão previstas uma série de garantias. O ECA abrange casos de proteção às pessoas com menos de 18 anos nos meios de comunicação de massa; detalha penas legais para casos de pornografia infantil em obras teatrais, cinematográficas, televisivas, fotográficas ou qualquer outro meio visual; e descreve também penas para casos similares na internet.
O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, aborda a exposição dos consumidores a práticas de comunicação mercadológica. O documento possui três artigos que tratam de aspectos relacionados à publicidade, incluindo um que define os conceitos de publicidade enganosa e publicidade abusiva. Quanto a práticas publicitárias abusivas, o texto da lei observa a situação da criança a partir da publicidade que se aproveita da dificuldade de julgamento e falta de experiência desse grupo social.
Em 2014 o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) aprovou a Resolução nº 163, que trata da abusividade no direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente, listando aspectos que podem ser enquadrados sob esta ótica, e que compreendem "elementos da linguagem publicitária (...) mais receptivos e, consequentemente, mais persuasivos ao público infantojuvenil".
Também em 2014, o Marco Civil da Internet foi criado para garantir direitos e garantias aos usuários de internet, incluindo crianças e adolescentes – uma vez que as experiências rotineiras e os indicadores os evidenciam como usuários.
O documento dialoga com direitos digitais que ligam o acesso à Internet ao exercício da cidadania e garante direitos como a inviolabilidade da intimidade e da vida privada; a proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua eventual violação; e a exigência de informações claras e completas sobre coleta, uso, armazenamento, tratamento e proteção de dados pessoais – que somente poderão ser usados para finalidades específicas.
Em 2015, o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying) foi formalizado por lei e previu a modalidade de Bullying Virtual ou Cyberbullying. Isso ocorre quando, no ambiente digital, alguém usa instrumentos próprios desse contexto para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar constrangimento psicossocial. Mais recentemente, a conduta passou a ser considerada crime pela lei brasileira.
Em 2016 foi instituído o Marco Legal da Primeira Infância, que estabeleceu princípios e diretrizes para a criação e a adoção de políticas públicas com foco em crianças com até seis anos. Esse marco reconhece a relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano. O artigo 5º do documento aponta diversas áreas a serem priorizadas, entre elas a "proteção contra toda forma de violência e pressão consumista" e "a adoção de medidas que evitem a exposição precoce à comunicação mercadológica".
Proteção integral e autonomia progressiva de crianças e adolescentes
Na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento, crianças e adolescentes têm o direito de que os adultos ajam em favor deles. Assim, existem direitos fundamentais e específicos que lhes são assegurados, com foco no seu desenvolvimento saudável nas muitas esferas da vida.
Proteger integralmente crianças e adolescentes também envolve observar uma responsabilidade compartilhada por diversos grupos da sociedade sobre esses sujeitos, inclusive no ambiente digital.
Amparada pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, a provisão de qualquer medida de proteção infantojuvenil deve incluir a participação dessas pessoas na vida em sociedade.
As crianças e adolescentes, contudo, aplicam aos poucos seus aprendizados às suas vivências e, nesse sentido, vão desenvolvendo as suas capacidades. Fala-se, portanto, em um processo progressivo de autonomia que considera as faixas etárias, mas também compreende as particularidades dos contextos.
A liberdade para navegar, consumir e produzir no ambiente digital deve ser associada a processos de educação, diálogo e acompanhamento das atividades online. Afinal, na experimentação das oportunidades há também chance de exposição a situações de risco.
Destacado no Comentário Geral nº 25 sobre os Direitos das Crianças em relação ao ambiente digital, o respeito ao desenvolvimento progressivo das capacidades de crianças e adolescentes define a autonomia com que cada um deles poderá experimentar as vivências digitais. "Uma criança obviamente deve receber mais atenção do que um adolescente no acesso à rede. E a autonomia de um adolescente de 17 anos deve ser maior do que a de um de 14 anos. Mas, em todos esses casos, a liberdade adequada às especificidades de cada faixa etária deve ser cultivada".
Essa ideia foi reforçada pelo Decreto n° 9.579, de 2018, dois anos depois, exigindo que qualquer estratégia publicitária adeque-se às exigências de direitos previstos para as crianças.
Também desde 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) aborda, em seu artigo 14, o tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes nos contextos online e offline. A lei define que o melhor interesse desse público como princípio ético basilar para o desempenho de atividades como o tratamento de dados pessoais.
Entre as contribuições da LGPD, encontra-se a exigência de que as informações sobre o tratamento de dados sejam comunicadas aos usuários de maneira simples, clara e acessível, em linguagem que permita o entendimento não só dos responsáveis mas também das próprias crianças.
Outros parâmetros vêm de convenções e tratados multilaterais que indicam a necessidade de regulação democrática daquilo que é praticado nas diversas mídias e exigem compromissos e prestações de conta por parte dos Estados signatários.
A Convenção sobre os Direitos das Crianças da Organização das Nações Unidas (ONU) é um importante instrumento de apoio nesse sentido. Como um Estado-Parte da Convenção, o Brasil garante os direitos fundamentais de todas as pessoas com menos de 18 anos; entre eles a privacidade, a segurança e a ampla perspectiva do direito à comunicação.
Já o Comentário Geral n° 25 da ONU sobre os direitos das crianças no ambiente digital aborda, desde 2021, o ponto de vista das próprias crianças e adolescentes sobre como a tecnologia digital é vital para seu futuro e sobre como acreditam que esse ambiente deve apoiar, promover e proteger o seu engajamento de forma segura e equitativa. Vale mencionar, inclusive, que esse documento foi elaborado com a escuta de mais de 700 crianças, adolescentes e jovens, entre 9 e 22 anos, de 28 países, nos seis continentes.
Com base nos princípios gerais da não discriminação, do melhor interesse da criança, do direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento, e do respeito pela opinião da criança, o extenso e detalhado material convoca os países signatários a desenvolverem políticas públicas que permitam a tais sujeitos exercerem seus direitos na internet, constituindo-se, de fato, como cidadãos nesse ambiente.
Segundo o documento, “as ameaças à privacidade das crianças podem surgir da coleta e processamento de dados por instituições públicas, empresas e outras organizações, bem como de atividades criminosas como o roubo de identidade. As ameaças também podem surgir das próprias atividades das crianças e das atividades de membros da família, colegas ou outros, por exemplo, por mães e pais que compartilham fotografias online ou por um estranho que compartilha informações sobre uma criança”.
A atenção à privacidade, citada no parágrafo anterior foi reforçada, um ano depois, pela Emenda Constitucional n° 115, de 2022, que registrou a proteção de dados pessoais como um direito fundamental do povo brasileiro. Essa proteção continua sendo ampliada por novas medidas, como a Lei n°14.811, de 2024, de combate às muitas formas de violência contra a criança e o adolescente (cyberbullying, abuso e exploração sexual, entre outras).
É também o caso da Resolução n° 245 do CONANDA, lançada em abril de 2024, sobre os direitos das crianças e adolescentes no ambiente digital, que dispõe que tanto o poder público quanto as empresas precisam colaborar ativamente na divulgação de informações corretas sobre direitos e riscos que afetam crianças e adolescentes nos contextos digitais, bem como sobre riscos e oportunidades vinculados a produtos e serviços.
Os processos de construção e reafirmação de identidades cidadãs das crianças exigem, assim, uma responsabilidade compartilhada entre família, sociedade (incluindo empresas como as plataformas digitais que atuam em solo brasileiro) e Estado, não só na aplicação da legislação vigente, mas principalmente na adoção de princípios éticos mais amplos e condizentes com as experiências das crianças e adolescentes que ocupam a cena digital.
O papel do Sistema de Justiça
A Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente criaram um arranjo institucional com atribuições fundamentais ao Sistema de Justiça, na defesa dos interesses da criança e do adolescente. Na tomada de decisões de magistrados, promotores, defensores e advogados, as complexas relações entre esse público e os dispositivos digitais conectados à internet devem ser consideradas, à luz do que se sabe atualmente.
Por exemplo, a coleta de depoimentos por videoconferência pode facilitar o acesso de crianças e adolescentes à Justiça, sobretudo aquelas que vivem em zonas afastadas das sedes de tribunais, Ministério Público ou Defensorias Públicas. O não comparecimento ao ambiente formal de uma sala de audiências também pode estimular um relato livre e aberto.
Entretanto, não se pode esquecer das desigualdades no acesso à Internet, bem como das necessárias salvaguardas: assegurar-se que seus sistemas protejam adequadamente os dados e a intimidade das crianças ou adolescentes, que devem estar acompanhadas de um adulto. E, de todo modo, deve sempre estar à disposição da criança ou adolescente a possibilidade de estar fisicamente nos órgãos, a fim de se manifestarem e de participarem dos processos que lhes dizem respeito.
Além disso, caso um adolescente esteja privado de liberdade pela suposta prática de ato infracional, considera-se que a falta de contato pessoal pode ter um impacto negativo sobre as medidas de sua reabilitação e de justiça restaurativa. Nesses casos, deve-se proporcionar contato presencial para facilitar a capacidade de envolvimento significativo com sua reabilitação, evitando-se o uso de videoconferências, conforme referido pelo Comitê sobre Direitos da Criança no Comentário-Geral n° 25.
Agentes do Sistema de Justiça também podem vir a ser chamados para solucionar disputas no exercício do poder familiar. Nesse caso, sempre deverão ter em mente o interesse superior da criança, nos exatos termos definidos no Comentário-Geral n° 14 do Comitê sobre Direitos da Criança.
É o caso, por exemplo, de discussões sobre a necessidade de comunicação da criança ou adolescente com um dos responsáveis. Como este Guia desaconselha que a posse de aparelhos celulares do tipo smartphone ocorra antes dos 12 anos, recomenda-se que se dê preferência a telefones do tipo “dumbphone”, sem acesso a redes sociais ou aplicativos de mensagens, para esta finalidade.
A importância das atividades ao ar livre e o direito à desconexão
A lei brasileira garante, como direito de liberdade das crianças e adolescentes, o direito ao brincar. Porém, nos últimos anos, tem-se visto em todo o mundo uma queda significativa na qualidade e quantidade de acesso a experiências autônomas, independentes e sensíveis com a natureza e os espaços abertos e públicos.
O direito de crianças e adolescentes à desconexão é um fator fundamental para o seu desenvolvimento e bem-estar, assim como para o desenvolvimento de um vínculo de pertencimento com o território em que vivem.
Um levantamento recente aponta que o Brasil é um dos países em que as crianças passam mais tempo sedentárias diante das telas, e menos da metade segue as orientações recomendadas de exercícios físicos. Daí a importância de que o Estado, a sociedade civil, a escola e a família garantam, a todas as crianças e adolescentes, oportunidades seguras, éticas, inclusivas e de qualidade, nos diversos contextos online e offline.
Ao mesmo tempo, um conjunto amplo e consistente de pesquisas traz evidências de que o acesso a espaços abertos e a conexão com a natureza melhoram os marcos mais importantes de uma infância saudável – autorregulação, imunidade, capacidade física, aprendizado ativo, criatividade, sociabilidade – e contribuem significativamente para o desenvolvimento integral.
Além disso, os benefícios de uma infância rica em experiências comunitárias na cidade e em seus espaços naturais são mútuos: a criança que nutre um vínculo afetivo e se reconhece como parte do território em que vive também se preocupa em cuidar desse espaço, o que contribui para o desenvolvimento da cidadania e da conservação do meio ambiente.
Nesse sentido, é fundamental que o Poder Público garanta espaços urbanos seguros, mais verdes, ricos em oportunidades para encontros, interações, brincadeiras, aprendizagens, movimento e convívio.
Desconectar para reconectar
Nem sempre é possível que crianças e adolescentes passem a maior parte do dia nas ruas, parques, praças, clubes, locais esportivos ou praias, pois o Brasil é diverso, tem territórios rurais, áreas territoriais dispersas, situações sociais diferentes, com enormes desigualdades de acesso à infraestrutura urbana, equipamentos públicos e áreas de lazer. As cidades, territórios e o poder público nem sempre disponibilizam o espaço adequado e necessário.
A falta desses espaços e a sobrecarga familiar – especialmente das mulheres com o cuidado no ambiente doméstico e com as crianças – frequentemente exigem que crianças e adolescentes estejam dentro de casa, sendo que nem sempre há quem os supervisione. Além disso, a segurança pública, a violência no trânsito e o tempo de deslocamento até equipamentos públicos são preocupações constantes das famílias ao refletirem sobre opções de lazer que sejam alternativas às telas.
Ainda assim, na medida do possível, é fundamental que as famílias busquem equilibrar o tempo passado em atividades online com atividades externas, especialmente quando, por qualquer motivo, a criança ou adolescente passou longos períodos usando dispositivos digitais ou jogos eletrônicos.
Pesquisas científicas recentes sugerem que o tempo passado em atividades ao ar livre pode aliviar ou compensar os prejuízos do tempo excessivo online no processo de desenvolvimento motor, social e da linguagem.