Notícias
Em Brasilia (DF), Indígenas de cinco biomas participam da oficina inaugural do projeto Ywy Ipuranguete
- Foto: Mre Gavião / MPI
Representantes indígenas de 15 territórios participaram nesta terça (18) e quarta-feira (19), em Brasília (DF), da primeira oficina do Projeto Ywy Ipuranguete, uma iniciativa inédita para proteção da soociobiodiversidade em terras indígenas com duração prevista de cinco anos. O projeto prevê a implementação de Instrumentos de Gestão Ambiental e Territorial Indígena (IGATIs) para combater o desmatamento, garantir soberania alimentar, gerar renda sustentável e fortalecer as culturas tradicionais em áreas que enfrentam graves pressões ambientais e conflitos fundiários. Ao todo, a área contemplada pelas Tis é de 6,4 milhões de hectares, distribuídos nos biomas Mata Atlântica, Amazônia, Cerrado, Pantanal e Caatinga.
Durante os dois dias, foram apresentadas as principais diretrizes da iniciativa coordenada pelo Ministério dos Povos Indígenas com o financiamento do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF, na sigla em inglês). O projeto é gerido pelo Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio) e executado nos territórios pelo Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), que vai assessorar as organizações indígenas, com o apoio técnico da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), e outros parceiros locais. A oficina começou com a abertura que contou com a participação da secretária Nacional de Gestão Territorial e Ambiental do MPI, Ceiça Pitaguary, além de apresentações dos demais parceiros do projeto.
A iniciativa, explica Ceiça, busca garantir a implementação dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs) e outros modelos de gestão indígena, além de fortalecer a proteção da sociobiodiversidade nos territórios. A secretária também destacou que o projeto foi pensado para que os recursos internacionais alcancem diretamente as comunidades. “A ideia desse projeto é realmente estar no chão, executar as atividades que estão nos PGTAs, planejadas pelo próprio povo”, completou a fala de abertura.
Fabio Leite, representante do Funbio, explicou que o projeto Ywy Ipuranguete foi um dos mais rápidos aprovados na história do GEF, tramitando em apenas seis meses. De acordo com ele, esse modelo pode abrir caminho para novos financiamentos e ampliar a abrangência e replicabilidade das ações. “Se conseguirmos bons resultados, será muito mais fácil captar mais recursos no futuro”, disse.
O financiamento é proveniente do recém criado Fundo do Marco Global para a Biodiversidade (GBFF), atualmente gerido pelo Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF, na sigla em inglês), que também coordena outros fundos voltados para enfrentar os desafios ambientais e climáticos do planeta. O projeto foi aprovado na primeira lista de projetos do GBFF, em junho de 2024. E foi o único em território indígena, entre os três contemplados pelo GBFF, reforçando o papel dos povos indígenas na conservação da biodiversidade e na promoção de soluções aos desafios globais impostos pela emergência climática.
Ney Maciel, do IEB, explicou a estrutura do projeto e reforçou o protagonismo indígena na iniciativa. “É um projeto de proteção da vida dentro dos territórios indígenas através do fortalecimento do cuidado que vocês têm com o território de vocês”, disse. Ele detalhou os quatro principais eixos do projeto: vigilância e proteção territorial, economia indígena, fortalecimento das organizações indígenas e disseminação do conhecimento. Além disso, destacou a importância da participação das comunidades na definição das prioridades e na execução do projeto. “A gente vai em cada Terra Indígena para implementação do, abrir os documentos juntos, consultar os PGTAs e ver o que é que tem dentro do PGTA que vocês consideram prioridade”, explicou.
Com o alcance de 6,4 milhões de hectares, o equivalente a uma área maior que o estado do Rio de Janeiro, as Terras Indígenas contempladas abrangem diferentes biomas e povos. Na Bahia, o projeto atende as TIs e territórios Águas Belas (Pataxó), Barra Velha (Pataxó), Caramuru/Paraguassu (Pataxó Hã Hã Hãe), Comexatiba (Pataxó) e Coroa Vermelha (Pataxó); no Ceará, a TI Tremembé da Barra do Mundaú, habitada pelo povo Tremembé. Todas essas localizadas na Mata Atlântica, um dos biomas mais ameaçados do Brasil, onde os povos indígenas desempenham papel essencial na conservação da vegetação nativa, dos recursos hídricos e ecossistemas.
No Mato Grosso do Sul, estado que concentra algumas das maiores pressões sobre territórios indígenas, o projeto contempla os territórios: Cachoeirinha (Terena), Dourados (Guarani Nhandeva, Terena), Kadiwéu (Terena, Kadiwéu), Lalima (Terena, Kinikinau) e Taunay Ipegue (Terena). A região, que integra o bioma cerrado e pantanal é marcada por conflitos fundiários e intensa pressão do agronegócio, tem no fortalecimento da governança territorial um dos principais desafios para garantir os direitos indígenas e a proteção ambiental.
No Pará, duas terras indígenas são contempladas pelo projeto: TI Kayapó (Kayapó) e TI Munduruku (Mundurukú). Ambas localizadas na Amazônia, as terras são fundamentais para conter o avanço do desmatamento e da exploração ilegal de recursos naturais. Em Pernambuco, estão incluídas as TIs Entre Serras (Pankararú) e Pankararu (Pankararú), que integram o bioma da Caatinga.
Os territórios
Durante a dinâmica da oficina, os indígenas falaram sobre as particularidades dos seus territórios, bem como se dispunham de instrumentos para gestão. De acordo com Cleidiane Tremembé, seu povo tem um PGTA recém produzido, além de outros documentos, como cartografia social do mar, o mapeamento e inventário participativo alimentar. No entanto, salientou a liderança, ainda há desafios a serem enfrentados como a retirada de não indígenas invasores e a especulação imobiliária ilegal.
Ô-é Paiakan Kaiapó apresentou os instrumentos de gestão do povo amazônico. Feito em 2024 por sete associações indígenas, o plano é considerado um marco para a proteção do território e do modo de vida de mais de 6 mil indígenas, divididos em 70 comunidades no sul do Pará. No entanto, a liderança ressaltou a necessidade de ir além. “A terra indígena foi uma das mais impactadas por incêndios e também pelo garimpo. É necessário proteger nosso território. Sofremos muito impacto ambiental dentro da TI. O impacto social em governos passados foi complicado. Esse projeto vai implementar de forma complementar o PGTA dentro da TI”, explicou.
Os Terena da TI Taunay Ipegue, no Pantanal (MS), disseram que o novo projeto Iwy Ipuranguete deve ajudá-los a construir o seu PGTA. O território teve sua portaria declaratória publicada em 2016 e aguarda a homologação pelo Estado, o desenvolvimento do projeto vai permitir a ampliação da presença Estatal no território e reforça a valorização da ocupação tradicional do povo nessa área. A liderança indígena Simone Terena disse que há um projeto em andamento que os recursos e a orientação das instituições parceiras da iniciativa vão possibilitar a criação do plano de gestão que, sobretudo, deve buscar atenuar a pressão vivida pelo povo frente a expansão do agronegócio na região.
Situação também vivida pelos vizinhos da TI Cachoeirinha. Leosmar Terena é cacique de uma das aldeias que compõem a terra indígena. Ele explicou durante a dinâmica da oficina que a pressão da agricultura no entorno influencia na rotina do povo. O desmatamento destrói o habitat natural dos animais e aumenta a predação das plantações nas aldeias. Para ele, ao falar sobre emergência climática, o PGTA, que ainda será desenvolvido, colocará em pauta a soberania alimentar do povo. “As sementes não estão conseguindo se estabelecer em um regime de chuvas instável. Temos que discutir restauração, mas dentro deste contexto adverso das mudanças climáticas. Isso também é um desafio”, disse.
O cacique Eudes Kadiwéu também destacou os desafios enfrentados por seu povo, que vive em seis aldeias na região próxima a Bonito (MS). Segundo ele, os incêndios são constantes principalmente fora dos limites da Terra Indígena. Apesar de não terem um Plano de Gestão Territorial e Ambiental, possuem um Plano de Vida que precisa ser revisado e atualizado. Os Planos de Vida são um modelo de IGATIs, assim como os PGTAs. Eudes celebrou a oportunidade do novo projeto. "Sempre somos esquecidos, e desta vez não. Viemos levantar a bandeira e queremos executar da melhor maneira possível", comemorou.
Na dinâmica da oficina, o povo Pataxó salientou que enfrenta desafios como a especulação imobiliária, que impede, por exemplo, o acesso à praia, além de incidir diretamente nas disputas pelos territórios reivindicados pelo povo, além de ameaças como a mineração e violência, especialmente contra as mulheres. O plano de gestão do povo Pataxó, elaborado em 2012, precisa de atualização, em relação aos processos históricos e sociais já vivenciados e para contemplar os quatro territórios desse povo na Bahia. A monocultura de café e eucalipto contaminam poços com agrotóxicos, e o tráfico de drogas preocupa as comunidades, que temem represálias diante das denúncias.
Entre os Pankararu, que vivem em Pernambuco, o PGTA concluído em 2017 teve como foco o fortalecimento do território para garantir melhores condições de vida. Segundo Zenivaldo Bezerra, em 2023, um novo mapeamento territorial foi realizado para atualizar o planejamento diante das transformações e desafios recentes. Ele agradeceu a escolha do seu povo para o projeto, mas alertou para a necessidade de ações concretas e ágeis.
Já na TI Dourados (MS), o projeto deve estruturar o plano de gestão da área que sofre com graves conflitos territoriais. Apesar dos ataques externos e ameaças, o povo Guarani Kaiowá ressaltou que práticas como a produção agrícola, em parceria com o município, que garante alimentação para as escolas e estudantes, além de projetos voltados para a juventude precisam ser valorizadas e são fundamentais, como o trabalho de fortalecimento da identidade indígena. As lideranças reafirmaram o compromisso com a luta coletiva e enxergam na construção do PGTA uma oportunidade para esse fortalecimento.
Ademir Kabá, liderança Munduruku, alertou sobre as constantes ameaças à TI Munduruku, em Jacareacanga. Homologada com mais de 2 milhões de hectares, a TI enfrenta desafios com o crescimento populacional e a redução da circulação no território, que impactou atividades tradicionais como a extração da borracha e da castanha. Em 2013, os Munduruku iniciaram a elaboração do PGTA, mas interromperam o processo para resistir à construção das hidrelétricas no Teles Pires e São Manuel.
O garimpo, ao introduzir uma lógica individualizada, também afetou a organização comunitária. Para fortalecer a identidade e a valorização do território, os Munduruku investem em práticas coletivas e no uso da comunicação para dar visibilidade à sua luta. O território está entre os sete que passaram pelo processo de desintrusão deflagrado durante a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A operação foi concluída neste ano e consolidou uma das maiores investidas do governo federal contra o garimpo ilegal na Amazônia
A TI Caramuru-Paraguaçu também tem histórico de conflitos e retomadas. As retomadas são realizadas por povos indígenas mobilizados pela garantia de seus direitos territoriais, que historicamente vivenciam processos de expropriação e esbulho dos seus territórios originários. São resultado de um processo contínuo de violação de direitos desde a chegada dos colonizadores ao Brasil, com consequências que se arrastam até a atualidade. O território foi reconhecido pelo Estado em 1927, pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI), foi titulada pelo governo da Bahia e, após uma decisão judicial, os indígenas iniciaram um longo processo de reconquista.
Apesar das indenizações pagas pelo Estado e da recuperação gradual do território, o povo indígena relata que ainda há ocupantes não indígenas na área. Sem conhecimento sobre os Instrumentos de Gestão Ambiental e Territorial Indígena (IGATIs), a comunidade enfrenta o desafio de mobilizar pessoas de forma voluntária. Um pequeno projeto do Programa GATI, que antecedeu a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI), forneceu suporte no passado, mas não foi suficiente para estruturar as iniciativas locais.
A ideia é que os Planos de Gestão Territorial e Ambiental e outros modelos de gestão indígena do território sejam elaborados levando em consideração os desafios ambientais e sociais apontados pelas próprias comunidades, além das oportunidades locais por meios autônomos de desenvolvimento sustentável. Os próximos passos do projeto Iwy Ipuranguete serão as reuniões com os indígenas para a definição dos membros dos comitês regionais que devem acontecer nos próximos meses. Além da presença de representantes de cada uma das TIs, também estarão neste grupo representantes do MPI, da FUNAI, do IEB, além de parceiros locais.