Notícias
Povos de terreiro entregam carta compromisso com 21 propostas durante encontro na Fundação Cultural Palmares
1º Encontro Vozes Afro-Ancestrais do Cerrado
No início da tarde desta quinta-feira, a sede da Fundação Cultural Palmares foi marcada por um gesto ancestral de força e espiritualidade: uma lavagem simbólica com água de cheiro, folhas sagradas e cantos em iorubá. O ato, realizado no estacionamento, deu início ao 1º Encontro Vozes Afro-Ancestrais do Cerrado, que reuniu lideranças religiosas e representantes de terreiros do Distrito Federal e Entorno em um momento histórico de afirmação, escuta e mobilização política.
O encontro resultou na entrega oficial da Carta Compromisso das Comunidades de Terreiro do Cerrado, construída a muitas mãos ao longo de meses de escuta e articulação entre casas de axé. O documento reúne 21 propostas estruturantes, com foco em saúde comunitária, práticas integrativas, valorização de patrimônios imateriais, preservação ambiental, economia solidária, combate à intolerância religiosa e fortalecimento de redes culturais.
A carta foi lida publicamente por Cida Santos, diretora substituta de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro (DPA) da Fundação Cultural Palmares, uma das principais facilitadoras da realização do encontro. Em sua leitura, Cida deu voz às reivindicações coletivas das comunidades, destacando a urgência da implementação de políticas públicas que respeitem a ancestralidade e assegurem os direitos das tradições afro-brasileiras.
Entre as propostas apresentadas, um dos pontos centrais é a revitalização da Praça dos Orixás (Prainha) — espaço tombado como patrimônio cultural do Distrito Federal, que tem sido alvo de abandono e depredação. A carta reivindica a preservação do local como território sagrado para rituais, encontros e celebrações das comunidades de matriz africana.
Para o presidente da Fundação Cultural Palmares, João Jorge Rodrigues, o encontro representa o início de um novo ciclo. “Durante muito tempo, a Palmares se afastou da sua missão original. Este evento simboliza o retorno à escuta ativa e à construção coletiva com os povos de terreiro. Não sairemos de Brasília sem restaurar a dignidade da Prainha. A fé que resistiu nos porões da escravidão está viva, e ela segue reconstruindo este país”, afirmou.
Presente no evento, a deputada federal Érika Kokay reforçou o papel dos terreiros como espaços de acolhimento, cuidado e produção de saberes. “O futuro é ancestral. Os terreiros são territórios de cura, de educação espiritual, de convivência e de sustentabilidade. Precisam ser reconhecidos como parte essencial da construção de políticas públicas que dialoguem com a realidade brasileira.”
Representantes do Entorno também marcaram presença, trazendo pautas urgentes de municípios historicamente excluídos das políticas culturais e religiosas. “Foi com muita luta que conseguimos estar aqui. Hoje conseguimos bater às portas e sermos recebidos. Mas sabemos o quanto ainda é difícil afirmar nossa fé nos municípios do Entorno. Essa carta é nossa voz coletiva, feita com fé e com coragem”, afirmou uma representante de Águas Lindas (GO).
Emocionada, Mãe Jussara, liderança do Entorno Sul, ressaltou o ineditismo do momento: “Pela primeira vez, o povo de terreiro do Entorno está aqui, dentro da Palmares. Fomos acolhidos todos os dias. E essa troca foi de grande valia para os nossos terreiros. Vamos continuar caminhando juntos.”
A Carta Compromisso será encaminhada às instâncias responsáveis, com o objetivo de subsidiar ações e políticas voltadas à proteção, valorização e fortalecimento das tradições afro-brasileiras. Entre os temas abordados estão também a criação de centros de memória, políticas de saúde integrativa, formação de lideranças em gestão pública, proteção a rituais funerários tradicionais, incentivo à pesquisa e ações voltadas à juventude, especialmente juventudes encarceradas.
O encontro reafirma o papel da Fundação Cultural Palmares como espaço de articulação e reconhecimento das culturas de matriz africana. “Esta é a casa do coração da comunidade negra. E uma capital como Brasília precisa ouvir o som do coração. Os tambores batem como o coração: com verdade, com resistência e com liberdade”, concluiu João Jorge.


