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Angola 50 anos: um espelho para o Brasil
Independência de Angola
O cinquentenário da independência de Angola, celebrado em 11 de novembro de 2025, é um marco que ultrapassa fronteiras. Para o Brasil, essa data reflete um elo histórico que não se limita à língua, mas se inscreve em uma mesma trajetória de exploração, resistência e reconstrução. Olhar para os 50 anos de Angola é revisitar as rotas do Atlântico que moldaram dois destinos: de um lado, a nação africana que conquistou a soberania política após séculos de colonização portuguesa; de outro, o país sul-americano que ainda luta para curar as feridas abertas por mais de trezentos anos de escravidão. Entre Luanda e Salvador, há um espelho que revela o que fomos e o que ainda precisamos ser.
A história de Angola não é linear. Após mais de quatrocentos anos de domínio colonial e quatorze de guerra de libertação, o país conquistou a independência em 1975 sob o lema de unidade e reconstrução. Desde então, enfrentou guerra civil, dependência econômica do petróleo e desafios de consolidação democrática. Ainda assim, sobreviveu, reorganizou-se e hoje busca diversificar sua economia, ampliar investimentos em educação e fortalecer a presença internacional. Em 2024, o crescimento do PIB angolano chegou a 4,4%, impulsionado pelos setores de energia, agricultura e serviços, segundo o Banco Mundial. O país reduziu gradualmente os índices de pobreza extrema, que ainda atingem cerca de 31% da população, e se esforça para converter o crescimento econômico em inclusão social. Trata-se de uma jornada de reconstrução constante, sustentada por uma juventude vibrante e uma diáspora ativa que enxerga na cultura, na tecnologia e na cooperação Sul-Sul caminhos para um futuro mais equitativo.
O Brasil, por sua vez, carrega no corpo social o legado direto dessa mesma história. Dos portos de Luanda e Benguela partiram centenas de milhares de africanos escravizados rumo ao litoral brasileiro. O Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, hoje reconhecido pela UNESCO como Patrimônio Mundial, é testemunho desse trânsito forçado que consolidou a matriz africana da cultura brasileira. O idioma, as religiões de matriz africana, a culinária e a música denunciam essa ligação profunda e indissociável. Somos, em essência, um país de origem africana, mas ainda incapaz de garantir igualdade real à sua maioria negra.
Os dados são inescapáveis. Mais de 56% dos brasileiros se declaram pretos ou pardos, mas a renda média dessa população corresponde a 58% da renda média de pessoas brancas. O Atlas da Violência mostra que 77% das vítimas de homicídio são negras, e que jovens negros continuam a morrer quatro vezes mais do que jovens brancos. Na política, no empresariado e nas universidades, a sub-representação permanece como regra. O racismo estrutural, que em Angola se manifesta nas heranças do colonialismo, no Brasil se perpetua pela normalização das desigualdades. Se Angola luta para converter independência em cidadania plena, o Brasil ainda luta para transformar abolição em democracia real.
O paralelo entre os dois países é inevitável e necessário. Angola, ao completar meio século de soberania, enfrenta a tarefa de diversificar sua economia, reduzir a dependência de recursos naturais e construir instituições sólidas que resistam à corrupção e à desigualdade. O Brasil, com quatro décadas de redemocratização, precisa consolidar uma política de reparação histórica, garantir que a população negra participe da formulação das políticas públicas e assegurar que as leis de promoção da igualdade racial, como a 10.639/03 e o Estatuto da Igualdade Racial, deixem de ser declarações e se tornem prática de Estado. Em ambos os casos, o desafio é transformar memória em projeto e projeto em justiça.
As relações entre Brasil e Angola têm potencial estratégico e simbólico. O intercâmbio cultural e educacional, as parcerias em tecnologia, agricultura e energia, e a cooperação acadêmica podem se tornar instrumentos de uma diplomacia de reparação, uma política internacional construída entre iguais, baseada no reconhecimento mútuo e na construção de um futuro compartilhado. As universidades brasileiras que hoje recebem estudantes angolanos e os projetos culturais que circulam entre os dois países são expressões de uma nova geopolítica afro-atlântica, em que o conhecimento, a cultura e a solidariedade se tornam armas contra o esquecimento.
Cinquenta anos de Angola representam, para o Brasil, uma convocação moral. É o momento de encarar a herança colonial que ainda define nossas estruturas sociais e políticas. É o tempo de compreender que independência e liberdade só se realizam quando a dignidade é coletiva. A história de Angola demonstra que nenhum povo conquista soberania sem memória e sem enfrentamento das próprias contradições. A história do Brasil confirma que não há democracia verdadeira enquanto a vida negra for desvalorizada.
O Atlântico que nos uniu pela dor pode ser também o espaço de uma nova construção civilizatória. Celebrar Angola é reconhecer o espelho que nos devolve: o retrato de dois povos que resistiram ao apagamento e que agora exigem protagonismo e reparação. É compreender que o futuro se escreve na língua que compartilhamos, mas sobretudo na justiça que ainda devemos uns aos outros. Angola, aos cinquenta anos, reafirma a coragem de reinventar o próprio destino. O Brasil, ao observá-la, precisa ter a mesma coragem.