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Lições da Nova Geopolítica da Terra: Reflexões a partir da CRIC-23 no Panamá
Aldrin Pérez (INSA) e Alexandre Pires (MMA) na CRIC-23 (Divulgação/INSA)
Por Aldrin M. Pérez-Marín
Instituto Nacional do Semiárido – INSA/MCTI
Panamá recebeu, entre 1º e 5 de dezembro de 2025, mais do que especialistas. Recebeu uma disputa silenciosa — e estratégica — sobre quem vai ajudar a definir o futuro da governança global da terra. A CRIC 23, embora oficialmente “não-negociadora”, mostrou que quem falar agora terá mais chances de liderar depois. E, nessa arena, o Brasil não pode entrar em silêncio.
A reunião revelou novos rumos da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD). Rumos que tocam diretamente a vida, a economia e a produção de conhecimento de quem vive nas terras secas do mundo, de quem estuda a Caatinga e o Semiárido, de quem produz no chão seco e de quem toma decisões políticas para garantir que esse território continue vivo — e esperançoso.
Este texto traz um olhar crítico, comprometido e propositivo sobre os movimentos que estão redesenhando o papel dos países na agenda global da terra e, sobretudo, sobre o que o Brasil e um instituto criado pelo presidente Lula para pensar criticamente o desenvolvimento sustentável do Semiárido — o INSA — precisam fazer para ocupar, com legitimidade, o lugar que já construíram ao longo de seus anos de existência.
O jogo começou antes da COP 17 da Mongólia — e a Caatinga e o Semiárido estão em disputa
Embora as Partes já soubessem que a UNCCD iniciaria os trabalhos rumo ao Marco Estratégico Pós-2030, o que se observou na CRIC 23 foi um movimento claro de antecipação política. A reunião, mesmo não-negociadora, funcionou como um espaço de ensaio e alinhamento, no qual países, blocos regionais e coalizões começaram a testar posições, influenciar narrativas e preparar terreno para as decisões formais da COP 17. As discussões que deveriam ganhar corpo apenas na Mongólia começaram a ser moldadas ali, nos corredores, nos grupos técnicos e nas mesas temáticas — e quem não entrar agora corre o risco de chegar atrasado ao debate.
É nesse contexto que o Brasil precisa estar atento. Garantir a presença explícita dos biomas secos tropicais é fundamental, pois, sem isso, a Caatinga — maior floresta tropical seca das Américas — e o Semiárido brasileiro podem voltar a ficar invisíveis nas grandes sínteses globais sobre desertificação, degradação e restauração. Esse risco não deriva da falta de ciência na região, que é robusta e reconhecida, mas de como o conhecimento é incorporado (ou não incorporado) nos processos diplomáticos e nos documentos de referência da Convenção.
A invisibilidade nasce da forma como as narrativas internacionais são construídas: muitas vezes baseadas em ecossistemas áridos considerados centrais — Sahel, Norte da África, Ásia Central — e por redes científicas que historicamente tiveram maior acesso às instâncias globais. Quando o Brasil não ocupa de forma ativa os espaços onde indicadores, prioridades e metodologias são debatidos, o Semiárido tende a aparecer diluído em categorias amplas, como “América Latina e Caribe”, perdendo singularidade e, com isso, relevância política.
Não é falta de produção científica, portanto, mas falta de tradução geopolítica dessa ciência. Sem presença estratégica, o conhecimento produzido no Semiárido entra como dado técnico — e não como narrativa estruturante. Isso reduz nossa capacidade de influenciar decisões, metodologias de monitoramento, critérios de financiamento e prioridades da agenda internacional.
Por isso, o que está em disputa não é apenas reconhecimento acadêmico, mas o lugar do Semiárido brasileiro nas decisões que moldarão o futuro da UNCCD até 2040. E esse lugar precisa ser ocupado agora, enquanto o Marco Pós-2030 ainda está sendo desenhado.
Neutralidade em Degradação de Terras: de conceito a critério estratégico da diplomacia ambiental
Na CRIC 23, a Neutralidade em Degradação de Terras (NDT) deixou definitivamente de ser um compromisso voluntário no papel e passou a operar como um critério estratégico da diplomacia ambiental, central para acessar financiamentos, estabelecer cooperações e fortalecer o reconhecimento internacional dos países. A mensagem foi inequívoca: quem não dispõe de monitoramento sólido perde acesso a recursos; quem não transforma diagnósticos em projetos concretos perde relevância; e instituições que não se organizam internamente perdem capacidade de dialogar em pé de igualdade. É um recado direto aos governos — e também às instituições científicas responsáveis por transformar dados em ação, como o INSA, criado pelo presidente Lula em 2004 justamente para pensar criticamente as terras secas do Brasil.
Nesse novo contexto, o Brasil tem condições reais de se destacar. Iniciativas como o Observatório da Caatinga e da Desertificação, os sistemas estaduais de monitoramento e o avanço no uso de sensoriamento remoto conferem ao país uma base robusta. Mas esse potencial só ganhará expressão diplomática se essas iniciativas forem articuladas, fortalecidas e alinhadas às especificidades socioecológicas do Semiárido. Não basta monitorar: é preciso demonstrar capacidade técnica, institucional e territorial para transformar dados em planos, projetos e soluções ajustadas à realidade local.
É nesse cenário que ganha força a proposta da Sala de Situação do Observatório da Caatinga e da Desertificação no INSA, concebida para ampliar a capacidade do Instituto de integrar monitoramento, análise e comunicação estratégica. Mais do que um ambiente físico, a Sala de Situação pode se configurar como um núcleo de inteligência territorial, reunindo computadores de alto desempenho, telas de visualização e softwares especializados para integrar informações críticas sobre o Semiárido em tempo quase real. Ao articular eixos estruturantes — sociedade/territórios, ambiente/territórios e economia/territórios — a Sala criará conexões entre dados que hoje se encontram dispersos, possibilitando análises, alertas e sínteses que dialogam diretamente com gestores públicos, pesquisadores, comunidades locais e organismos internacionais.
Com isso, o INSA tem a oportunidade de se consolidar como instituição de referência, articulada e estratégica, oferecendo relatórios integrados, indicadores robustos e produtos analíticos que subsidiem políticas públicas e processos internacionais. Regionalmente, a Sala poderá apoiar estados e municípios diante de secas, eventos climáticos extremos, degradação e riscos ambientais. Nacionalmente, tende a fortalecer a presença do Instituto nos relatórios oficiais do Brasil sobre desertificação, mudanças climáticas e ODS 15.3. Internacionalmente, abre caminho para que o INSA se posicione como um centro qualificado de informações sobre a Caatinga, o Semiárido e as florestas secas tropicais no âmbito da UNCCD.
Essa iniciativa se alinha a um movimento mais amplo que avança no país: a articulação da RENDA — Rede Nacional de Desertificação e Aridez, instalada durante o I Simpósio de Combate à Desertificação na UFPE. A RENDA simboliza uma rede que se entrelaça e se fortalece — como as redes nordestinas, tecidas com paciência, arte e firmeza. Ela integra observatórios, universidades, órgãos públicos, organizações sociais e comunidades, conectando saberes, harmonizando metodologias e fortalecendo respostas coletivas à desertificação e à aridez no Brasil.
A RENDA não se limita a compartilhar dados: ela estrutura um ecossistema colaborativo que transforma informação em política pública, ciência em estratégia e cooperação em impacto real. Em um momento em que a NDT se converteu em parâmetro de negociação internacional, a articulação entre a Sala de Situação e a RENDA amplia a capacidade do INSA de influenciar agendas, propor soluções e construir políticas baseadas em conhecimento sólido e alinhadas às necessidades da região.
Nesse momento em que a NDT se converte em critério estratégico da diplomacia ambiental, a articulação entre a Sala de Situação e a RENDA amplia de forma significativa a capacidade do INSA de influenciar agendas, propor soluções e produzir respostas alinhadas às necessidades da região e às exigências da governança internacional.
A criação desses espaços representa uma oportunidade histórica para o Semiárido e para o Brasil: a chance de transformar ciência em ação, território em estratégia e o INSA em protagonista qualificado de uma nova fase da governança global da terra.
Tempestades de poeira: o novo eixo da Convenção
Um dos movimentos mais marcantes da CRIC 23 foi a ampliação do debate sobre tempestades de poeira e de areia, que passaram a ocupar espaço central na programação da Convenção. Fenômenos historicamente associados à Ásia e ao Norte da África agora integram, de forma estruturada, a agenda global da UNCCD, sinalizando que esse tema tende a orientar pesquisas, financiamentos e prioridades geopolíticas nos próximos anos.
Essa mudança pode gerar interpretações equivocadas sobre as vulnerabilidades brasileiras. Quando um fenômeno se torna central na narrativa internacional, cria-se a tendência de generalizar riscos para todas as regiões classificadas como “terras secas”, independentemente de suas particularidades ecológicas. No caso do Brasil, isso pode levar à percepção — incorreta — de que o Semiárido apresenta padrões de exposição semelhantes aos de regiões afetadas por desertos clássicos ou por processos intensos de tempestades de poeira, como o Sahel, o norte da China ou o Oriente Médio.
Além disso, estudos internacionais que utilizam imagens de satélite ou modelos globais podem interpretar sinais temporários de solo exposto, queimadas ou perda de vegetação na Caatinga como evidências de risco extremo de poeira atmosférica, sem considerar a dinâmica ecológica e sazonal própria do bioma. Essa leitura descontextualizada pode influenciar relatórios, indicadores e até decisões de alocação de recursos, criando distorções políticas indesejadas.
Por isso, a presença do Brasil nessa agenda é fundamental. O Semiárido brasileiro possui eventos localizados de poeira, especialmente em áreas degradadas ou sob uso inadequado do solo, mas não apresenta padrões comparáveis ao cinturão global das grandes tempestades de poeira. Sem participação ativa nos debates, há o risco de que a realidade brasileira seja interpretada por modelos genéricos, que não captam a complexidade territorial do Nordeste e podem gerar rótulos inadequados.
Nesse cenário, o INSA tem papel estratégico. Com sua expertise em seca, solos, sensoriamento remoto e monitoramento da degradação, o Instituto pode oferecer análises contextualizadas, qualificar interpretações, corrigir equívocos metodológicos e garantir que a imagem do Semiárido seja construída com base em evidências. Cabe ao INSA mostrar, com ciência, que a poeira no Brasil é mais resultado de práticas locais de uso do solo do que de processos atmosféricos de larga escala.
Ao ocupar esse espaço, o Brasil protege sua narrativa territorial, evita interpretações distorcidas e contribui para que a UNCCD compreenda o Semiárido não a partir de comparações indevidas, mas pela singularidade de seus processos e soluções.
Terra como eixo de governança: tenência e justiça territorial
A UNCCD começa a tratar a terra não apenas como recurso natural, mas como pilar de governança. Isso significa incorporar indicadores de posse, gestão comunitária e segurança jurídica na avaliação de impactos.
Para o Semiárido, essa agenda é particularmente sensível. Estamos falando de territórios indígenas, comunidades tradicionais, agricultores familiares, assentamentos rurais e diversos arranjos fundiários convivendo no mesmo mosaico.
É preciso garantir que soluções globais não passem por cima dessa complexidade. O Brasil deve defender abordagens contextualizadas — e não simplesmente importar modelos externos de regularização e governança que podem conflitar com nossas políticas e legislações.
Capacitação como poder: onde o INSA pode virar referência continental se nos movimentamos inteligentemente
A Convenção deu destaque especial à formação de capacidades, criando uma oportunidade rara: a criação de hubs regionais de capacitação e centros de excelência.
É hora de o Brasil pleitear, com firmeza, o reconhecimento formal do INSA como centro de excelência do Semiárido das Américas em temas como seca, manejo sustentável da terra, restauração e monitoramento.
Esse reconhecimento pode atrair:
- investimentos,
- parcerias internacionais,
- intercâmbios científicos,
- e maior protagonismo diplomático.
Capacitar também é fazer política — e a UNCCD sabe disso. Quem formar quadros técnicos, lideranças e gestores será ouvido com mais atenção.
Ciência e política: o GLO 3 como campo de disputa
A CRIC 23 mostrou que o novo relatório Perspectiva Global da Terra 3 (GLO 3) será mais político do que técnico. Ele tende a trazer recomendações normativas e a orientar políticas públicas em escala global.
Há um risco real: se não atuarmos articuladamente, a Caatinga e o Semiárido serão novamente sub-representados. Biomas com menos publicações internacionais, como os ecossistemas tropicais secos, costumam aparecer pouco nos grandes diagnósticos.
Precisamos garantir que nossa produção científica — robusta, embora muitas vezes invisibilizada — esteja incluída. A UNCCD está redesenhando o futuro da ciência que molda políticas globais. Ou o Brasil participa, ou assiste.
Colocar que esta iniciativa pode ganhar densidade com o convenio com a China sobre maquinária agrícola para agricultura familiar.
Gênero como diplomacia: vozes que não podem faltar
A Assembleia de Gênero não foi evento paralelo. Foi estratégia diplomática.
Dela emergiu uma narrativa poderosa: gênero + liderança indígena + governança territorial. Essa combinação está ganhando espaço na diplomacia ambiental e influenciando decisões centrais da Convenção.
O Semiárido tem histórias reais e inspiradoras de mulheres rurais, quebradeiras de coco, guardiãs de sementes, agricultoras experimentadoras, lideranças comunitárias. Essas experiências precisam aparecer no debate global — não como exceção folclórica, mas como referência concreta de resistência, inovação e cuidado com a terra.
A nova geopolítica da terra — em 10 linhas diretas
A CRIC 23 deixou claro:
- A NDT virou critério de financiamento — não apenas discurso.
- A UNCCD evolui para uma convenção de governança da terra.
- Quem não tiver dados espaciais de qualidade ficará para trás.
- Diagnóstico sem projeto não vale mais nada.
- Políticas fragmentadas serão penalizadas politicamente.
- Fundos públicos serão insuficientes: vem aí a financeirização da restauração.
- A Caatinga entrou no radar global — oportunidade e escrutínio.
- A restauração terá padrões obrigatórios e métricas de carbono.
- A UNCCD quer governos que assumam a agenda — não apenas relatórios soltos.
- Quem liderar agora moldará o Marco Estratégico até 2040.
A CRIC 23 mostrou que a UNCCD está deixando de ser uma convenção sobre desertificação para se tornar uma convenção de governança da terra. E o Brasil, com sua história de liderança e sua capacidade científica —tem todas as condições de influenciar os rumos dessa agenda. Mas isso depende de presença, narrativa e decisão política. Porque, no fim das contas, na diplomacia ambiental vale a regra simples que a CRIC 23 escancarou: quem fala agora lidera depois — e quem liderar na COP 17 ajudará a desenhar o futuro da UNCCD até 2040.
E o Brasil? E o INSA? E nós?
A CRIC 23 foi um sinal.
Um aviso.
E também uma chance.
Para o Brasil, é momento de reposicionar sua voz.
Para o Semiárido, é momento de transformar reconhecimento em política pública concreta.
Para o INSA, é momento de assumir seu papel de casa do Semiárido brasileiro — um lugar que articula ciência, território e diplomacia ambiental.
Quem fala agora lidera depois.
E o Brasil tem muito a dizer.
Sobre o CRIC da UNCCD
O Committee for the Review oftheImplementationofthe Convention (CRIC) é um dos principais órgãos subsidiários da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD). Reunindo periodicamente países signatários, especialistas e representantes da sociedade civil, o CRIC funciona como espaço estratégico para avaliar o progresso global no enfrentamento da desertificação, degradação do solo e impactos da seca. Durante o encontro, são apresentados relatórios nacionais, discutidos indicadores de monitoramento e analisadas boas práticas que orientam a implementação da Convenção. O CRIC também promove o alinhamento das políticas nacionais às metas de Neutralidade na Degradação do Solo (LDN), fortalecendo a cooperação internacional e apoiando os países na construção de respostas eficazes e baseadas em evidências para a sustentabilidade dos territórios áridos, semiáridos e subúmidos secos.