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Do Semiárido brasileiro para o mundo: quando a ciência aprende com a terra e ensina o planeta
Existe uma ciência que nasce devagar: Na cadência da chuva incerta, na variabilidade do tempo como regra, no tempo da formação do solo, no brilho da manhã que chega depois de meses de estiagem e nos mistérios da Caatinga escritos em braile. Uma ciência que não se encerra nas páginas de artigos, mas que pulsa no trabalho diário de mulheres, homens, jovens e comunidades inteiras que insistem em fazer brotar vida onde muitos só enxergam escassez, limitações.
É dessa ciência — humana, viva, compartilhada — que nasce a história que hoje ganha o mundo.
O estudo “Agroecologia no Semiárido brasileiro: estratégias inovadoras para regenerar territórios, ecossistemas e renda, fortalecendo resiliência e sustentabilidade climática”, conduzido por Aldrin Martin Pérez Marín, do Instituto Nacional do Semiárido (INSA/MCTI), foi premiado internacionalmente pela Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD), na competição global Investing in Drought Resilience, que reuniu experiências de todos os continentes.
Selecionado entre experiências de vários países, o estudo brasileiro ficou em primeiro lugar na categoria “casos econômicos e de negócios”, um reconhecimento raro a pesquisas que unem rigor científico e compromisso social.
Mas o que a premiação comemora, vai além de um estudo. Ela comemora um modo de olhar o Semiárido — não como problema, mas como mestre e, coloca o INSA e o Semiárido brasileiro no centro da discussão internacional sobre como financiar, valorizar e ampliar iniciativas de resiliência à seca.
Quando o semiárido é professor
O Semiárido ensina.
Ensina que a diversidade é mais sábia que a uniformidade.
Ensina que a espera é uma forma de força.
Ensina que a vida não é feita de abundância infinita, mas de gestão cuidadosa das pequenas abundâncias que o tempo oferece.
E foi exatamente isso que o estudo premiado buscou compreender: o que faz algumas famílias camponesas resistirem, florescerem e prosperarem mesmo sob as condições mais áridas?
Durante anos, a equipe de pesquisadores do INSA, percorreu territórios da Caatinga, do Semiárido, conversando, ouvindo e construindo conhecimento com agricultores e agricultoras familiares de base agroecológica. Não se tratava apenas de registrar dados, mas de desocultar saberes, revelar a inteligência ecológica escondida nos gestos cotidianos:
- escolher a hora certa de plantar,
- diversificar roçados e quintais,
- guardar sementes, água e alimentos,
- manejar a caatinga com respeito,
- dividir a água, o tempo, a força, a esperança.
O resultado não surpreendeu quem vive no Semiárido, mas surpreendeu o mundo: agroecossistemas diversificados são mais resilientes, mais eficientes e mais lucrativos do que modelos agrícolas dependentes de insumos e vulneráveis às secas. A ciência confirmou o que a vida já sabia.
Como registraram os dados, a cada R$ 1 investido, agroecossistemas agroecológicos retornam R$ 2 a R$ 3 em alimento, renda, saúde do solo, biodiversidade e autonomia (dados do estudo de caso).
Não é apenas produção: é regeneração de territórios e de condições de vida.
Lições que o estudo levou ao mundo
A UNCCD, ao premiar a pesquisa, destacou sua força inspiradora e sua capacidade de comunicar uma mensagem urgente: investir na resiliência à seca é investir na vida.
E aqui está uma das grandes aprendizagens do estudo: resiliência não nasce do combate à seca, mas da convivência com ela.
A pesquisa revela quatro pilares dessa convivência:
1. A diversidade como segurança
Quanto mais diversificados os sistemas — plantas, animais, usos do solo — menor o risco. A diversidade cria “seguros ecológicos”.
2. A água como bem comum
Cisternas, barreiros e tecnologias sociais são mais que infraestrutura: são conquistas coletivas que garantem dignidade.
3. A cooperação como tecnologia social
Redes de sementes, mutirões e mercados locais são a verdadeira “inovação social” do Semiárido.
4. A democratização dos meios de produção
Água, terra e biodiversidade não mãos de quem cuida:
Com as mãos, como um artesão que respeita o ritmo da natureza.
Com a mente, como um cientista que busca compreender seus mistérios
Com o coração, como um artista que reconhece a beleza da sua diversidade
Essas lições, agora destacadas pela ONU, mostram que o Semiárido não é um território à margem: é um laboratório vivo de soluções globais.
O reconhecimento que atravessa fronteiras
Com o prêmio, o pesquisador foi oficialmente convidado pela UNCCD e pela Iniciativa Economics of Land Degradation (ELD/GIZ) para apresentar o estudo no CRIC-23, na Cidade do Panamá.
No evento internacional, a experiência brasileira terá um espaço de destaque no painel “Money Meets Resilience: Innovative Investment Pathways for Drought Action”, que reúne especialistas de diversos países para discutir caminhos financeiros inovadores para enfrentar a seca.
Na prática, isso significa que:
a Caatinga entra no mapa das soluções climáticas globais;
o Semiárido brasileiro passa a ser referência em resiliência;
e o INSA fortalece seu papel como instituição-chave na agenda internacional de combate à desertificação.
Aprendizagens que ficam
Este reconhecimento traz consigo reflexões profundas. Entre elas:
• A ciência é mais forte quando nasce do diálogo com a realidade.
Pesquisas tecidas no território têm mais impacto, mais legitimidade e mais poder transformador.
• A Caatinga, tantas vezes invisibilizada, é um bioma estratégico.
Ela sequestra carbono, alimenta famílias, sustenta economias e guarda saberes valiosos para o futuro do planeta.
• A convivência com o Semiárido não é adaptação — é inspiração.
Enquanto o mundo tenta lidar com a crise climática, o Semiárido já acumula décadas de experiências que ensinam a viver com a variabilidade climática.
• Investir na resiliência é investir em quem cuida.
Mulheres, jovens, comunidades tradicionais, agricultores familiares: são esses grupos que garantem vida ao território, e são eles que devem ser valorizados pelas políticas e pelos mecanismos financeiros.
Um marco para o INSA, um orgulho para o Brasil
Ao conquistar esse reconhecimento, o INSA reafirma sua vocação: produzir ciência comprometida com a vida, com o território e com as pessoas. Mostra que é possível fazer pesquisa sofisticada sem perder a simplicidade do diálogo, da escuta e da presença.
Mostra que ciência de excelência também nasce da poeira das estradas de terra, das conversas sob a sombra de um umbuzeiro, dos cadernos anotados à beira da roça.
E mostra, sobretudo, que o Semiárido — tantas vezes tratado como sinônimo de carência — é, na verdade, território de abundância de inteligência, cultura, criatividade e esperança.
Conclusão: quando o Semiárido fala, o mundo precisa ouvir
O prêmio da UNCCD não encerra uma história: ele inaugura um novo capítulo. Um capítulo em que o Semiárido ganha voz e autoridade para orientar políticas globais. Um capítulo em que a Caatinga é reconhecida como solução climática. Um capítulo em que a ciência feita com as comunidades mostra que a resiliência é possível — e urgente.
Talvez essa seja a maior aprendizagem de todas: a ciência só floresce quando caminha junto com o povo, e o Semiárido só floresce quando caminha junto com a ciência.
E é essa caminhada conjunta que agora atravessa fronteiras e inspira o mundo.
Para continuar esta caminhada, deixo três perguntas ao leitor:
(1)
Se ainda não sabemos reconhecer — nem medir — o que realmente sustenta a vida nos territórios secos, como podemos afirmar que estamos financiando resiliência, e não apenas reforçando velhos modelos de gestão que já não dão conta do presente?
Reúna seus amigos e amigas e debata sobre financiamento climático, resiliência, indicadores, modelos desgastados, sistemas territoriais, economia da seca e cegueira institucional.
(2)
O que precisamos desaprender — em nossas políticas, nossas ferramentas econômicas e nossas formas de produzir ciência — para que a convivência com a seca deixe de ser discurso e se torne, de fato, fundamento de um novo paradigma territorial?
Discuta com seus amigos e amigas a integração epistemologia, política pública, economia, ciência, território e convívio com a seca. Estimule a provocar mudanças de paradigmas “desaprender” é a chave.
(3)
Que futuro estamos realmente construindo quando financiamos tecnologias, infraestruturas e emergências, mas negligenciamos as relações — entre pessoas, solo, água, Caatinga, memória e cuidado — que são a verdadeira base da resiliência no Semiárido?
- Discuta com seus amigos e amigas a ética, política, financiamento, governança comunitária, socioecologia, valores, saberes territoriais e resiliência.
- Reposicionem o Semiárido como referência global, não como periferia.
- Reflexionem se resolve com resiliência relações ou com não tecnologia.