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Malês e as Independências do Brasil
Em 1835, a cidade de Salvador, antiga capital do Império, foi palco do maior levante de escravizados nos quase 400 anos de escravização no país. Chamada por historiadores de a "Revolta dos Malês", numa referência aos "Imalês" ou muçulmanos, ela consistiu na organização de um contingente de explorados nas lavouras, casas e nas ruas, onde ficavam os pretos de ganho, que, movidos pelo direito inato de independência e liberdade, decidiu impor-se pela luta. Neste domingo, 7 de setembro, oficialmente o Dia do Grito da Independência vivido às margens do Rio Ipiranga em 1822, o MAST, que tem como parte de sua missão divulgar o conhecimento científico e histórico, ampliando o acesso da sociedade ao saber e promovendo a ciência no Brasil, destaca aqueles que buscaram legítimos direitos no século XIX.
Antiga capital do Império, Salvador, entretanto, viveu sua primeira experiência emancipadora, para não dizer libertadora ou busca pela Independência, ainda no século XVIII. Chamada Conjuração Baiana, tratou-se de uma revolta em 1798 - nove anos após a Inconfidência Mineira. A ação baiana foi fortemente influenciada pela independência do Haiti, em 1791, quando pretos, pardos e mestiços decidiram expulsar a elite branca representada pelos colonizadores franceses. O movimento ganhou força três anos depois quando Paris vivia o chamado Reinado do Terror. A Revolução Francesa prosperou e um dos primeiros atos foi garantir a independência das colônias.
O primeiro levante brasileiro ficou conhecido também como Revolta dos Alfaiates por conta da profissão dos seus principais líderes. Além disso, outro motivo da revolta foi a grave crise social e econômica que assolava Salvador no final do século XVIII. O governo baiano conseguiu reprimir a rebelião e, em 1799, os rebeldes foram julgados e condenados à morte.
O povo malê representava um grupo que, com escrita e oralidade próprias, além da religião, não se curvava aos açoites e chibatas que calaram fundo no dorso de escravizados a partir das três primeiras décadas após a chegada dos Portugueses. Eles eram os nagôs e haussás. Lutavam para garantir a liberdade religiosa, baseada no Islamismo, em um Brasil que, em "plena Idade Média", impunha à força a fé cristã.
Foram mais de 20 conflitos envolvendo os nagôs e haussás na primeira metade do século XIX. Com destaques principalmente para dois destes levantes. Em 1807, no Dia de Corpus Christi, um grupo de insurretos escravizados planejou aproveitar que a atenção da guarda imperial estaria toda voltada para o ato religioso para avançar sobre as fazendas, libertar os cativos e escapar. Conhecida como a Revolta de Itapoã, por ocorrer na região que ficou imortalizada pela música de Vinícius de Moraes, a sublevação foi frustrada por conta da delação de um escravizado fiel ao colonizador.
Em 1822, após o Grito da Independência do Brasil, a Bahia proclamou sua própria Independência expulsando o que restava de militares portugueses em Salvador. Os conflitos entre cidadãos nascidos no Brasil e portugueses se intensificaram em fevereiro daquele ano e foram além do 7 de setembro. Na virada do ano, num combate que contou com a participação de mulheres, como Maria Quitéria, considerada a heroína da Independência da Bahia, os portugueses foram finalmente derrotados.
Independência e Morte
A historiadora Ynaê Lopes dos Santos lamenta que tenhamos aprendido tão pouco, nas escolas, sobre as guerras de independência em nosso próprio país. Mestre e doutora em História Social pela USP, a professora de História das Américas na Universidade Federal Fluminense (UFF) lembra que as revoltas ocorridas no país, e que não constam no calendário oficial, ajudaram a chegar ao 7 de setembro de 1822:
- Um Brasil forjado pelo e para os interesses de uma classe política e econômica muito bem desenhada, que fez tudo o que estava ao seu alcance para manter seus privilégios e propagar sua visão de mundo, que entendia a população branca como a única detentora do poder e do próprio fazer histórico. Um país para poucos. Os mesmos poucos de sempre.
E a historiadora resume:
- Mas a questão é que houve independência, e houve morte!
O conjunto de revoltas carrega a evidência dos maus tratos oriundos do aprisionamento, travessia do oceano Atlântico em condições desumanas, o comércio dos sobreviventes e o uso da força para realizar trabalhos não remunerados até a exaustão. Era, portanto, o retrato de uma sociedade que convivia com exploração e a violência de uma parcela que, em Salvador, representava 40% da população naquele período.
E lembra o doutor em História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Jorge José Mello, que os negros neste período, tanto na Bahia quanto no Rio, ocupavam-se em grande número nas casas dos seus "proprietários", ajudavam no comércio ou compunham chamados "escravos de ganho", que trabalhavam nas ruas, em geral no comércio de alimentos, e pagavam um valor fixo aos escravizadores.
Mas, em 1835, a chamada Revolta dos Malês, subiu na escalada da ação e também de reação. Os principais líderes da manifestação de 1835 foram identificados e nominados. Recentemente, eles tornaram-se personagens do filme "Malês", que tem direção e participação do ator Antonio Pitanga, além da sua filha, Camila Pitanga. Os líderes nominados pela História são: Ahuna; Pacífico Licutan; Sule ou Nicobé; Dassalu ou Damalu; Gustar; Manoel Calafete (liberto); Luís Sanim; e Elesbão do Carmo ou Dandará.
Candomblé
A historiadora Thamires Guimarâes acredita que a chegada dos malês ao Rio de Janeiro, no início do século XX, ou 12 anos após a chamada "Libertação" outorgada pela Princesa Isabel, em 1888, gerou repercussões até no campo religioso. Sob a influência do Alcorão, o Candomblé praticado na cidade ganhou componentes próprios e distintos do africano. O veto à ingestão de carne de porco aos "filhos de Xangô" é um exemplo.
Deste modo, revela a pesquisadora, não apenas o Catolicismo influenciou a religião de matriz africana, mas também o Islamismo. A palavra "atabaque", instrumento musical sagrado usado para "convocar" entidades, por exemplo, deriva do árabe "al-tabak".
Mas além de práticas desumanas como a violência e ausência de liberdade e independência, o que havia de crucial a justificar o conflito de relações entre os escravizados e os escravizadores cristãos residia no campo intelectual.
O fato de negros nagôs e haussás dominarem a escrita e leitura era visto com desdém e sentimento de inveja pelos algozes escravizadores - onde grassava o analfabetismo.