Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato
A denominação "povos indígenas isolados" se refere especificamente a grupos indígenas com ausência de relações permanentes com as sociedades nacionais ou com pouca frequência de interação, seja com não-índios, seja com outros povos indígenas.
Os registros históricos demonstram que a decisão de isolamento desses povos pode ser o resultado dos encontros com efeitos negativos para suas sociedades, como infecções, doenças, epidemias e morte, atos de violência física, espoliação de seus recursos naturais ou eventos que tornam vulneráveis seus territórios, ameaçando suas vidas, seus direitos e sua continuidade histórica como grupos culturalmente diferenciados.
Esse ato de vontade de isolamento também se relaciona com a experiência de um estado de autossuficiência social e econômica, quando a situação os leva a suprir de forma autônoma suas necessidades sociais, materiais ou simbólicas, evitando relações sociais que poderiam desencadear tensões ou conflitos interétnicos.
Segundo consta nas diretrizes da Funai, são considerados "isolados" os grupos indígenas que não estabeleceram contato permanente com a população nacional, diferenciando-se dos povos indígenas que mantêm contato antigo e intenso com os não-índios.
No Brasil, a Carta Magna, em seu artigo 231, reconhece a organização social, os hábitos, os costumes, as tradições e as diferenças culturais dos povos indígenas, assegurando-lhes o direito de manter sua cultura, identidade e modo de ser, colocando-se como dever do Estado brasileiro a sua proteção.
Sendo assim, compete à Funai, através da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados – GIIRC e por meio das Frentes de Proteção Etnoambiental, unidades descentralizadas da Funai especializadas na proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato, garantir aos povos isolados o pleno exercício de sua liberdade e das suas atividades tradicionais sem a necessária obrigatoriedade de contatá-los (art.2º, inciso II, alínea "d", Decreto nº 7778/2012). Neste sentido, cabe ao Órgão Indigenista Oficial, no exercício do poder de polícia, disciplinar o ingresso e trânsito de terceiros em áreas em que se constate a presença de índios isolados, bem como tomar as providências necessárias à proteção desses grupos (art. 7º, Decreto nº 1.775/96), por meio da restrição de ingresso de terceiros nessas áreas.
Esse dispositivo de proteção, respaldado em Portaria da Funai, consiste em instrumento para disciplinar o uso dos territórios ocupados pelos índios isolados, possibilitando assim as condições necessárias para realização dos trabalhos de localização de referências e proteção e promoção de direitos destes indígenas, bem como dos estudos de caracterização antropológica e ambiental da área, necessários ao procedimento adminstrativo de demarcação da terra indígena, conforme determinado pelo Decreto nº 1775/96.
Os estudos de localização e monitoramento dos povos indígenas isolados seguem algumas diretrizes básicas, no contexto da garantia constitucional de sua proteção, fundamento da Política para Índios Isolados, quais sejam:
a) Garantir aos índios isolados e de recente contato o pleno exercício de sua liberdade e das suas atividades tradicionais;
b) Zelar para que a constatação da existência de índios isolados não determine a obrigatoriedade de contatá-los;
c) Promover ações sistemáticas de campo destinadas a localizar geograficamente e obter informações sobre índios isolados;
d) Promover a regularização e a proteção das terras habitadas por índios isolados, incluídos todos os recursos naturais nelas existentes;
e) Assegurar atenção prioritária e especial à saúde dos índios isolados e de recente contato, devido à sua situação de particular vulnerabilidade;
f) Assegurar a proteção e preservação da cultura dos índios isolados, em suas diversas formas de manifestação;
g) Proibir, no interior das áreas habitada por índios isolados, toda e qualquer atividade econômica e/ou comercial (PortariaNº281/PRES/FUNAI, de 20 de abril de 2000).
No âmbito internacional, existem diversos convênios, tratados e declarações destinados a proteger os direitos dos povos indígenas isolados, a saber:
• Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU,1948);
• Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho – (OIT) – das Nações Unidas (ONU,1989);
• Convenção sobre Prevenção e Sanção do Genocídio (ONU,1948);
• Declaração Universal sobre Diversidade Cultural da UNESCO(UNESCO,2001);
• Convenção de Paris sobre Proteção do Patrimônio Intangível (UNESCO,2003);
• Diretrizes de Proteção para os Povos Indígenas Isolados e Contato Inicial da Região Amazônica, Grã Chaco e Região Oriental do Paraguai(ONU, 2012).
Até o presente momento, a Convenção 169 da OIT é o instrumento internacional que representa o tratado mais avançado sobre o tema. Seus dispositivos estabelecem para os países que a ratificaram – como o Brasil – normas mínimas que visam à proteção dos grupos menos favorecidos, considerando uma igualdade de tratamento entre os povos indígenas e demais integrantes das sociedades nacionais.
Atualmente, no Brasil temos cerca de 114 registros da presença de índios isolados em toda a Amazônia Legal. Estes números podem variar conforme a evolução dos trabalhos indigenistas em curso realizados pela Funai. Dentre estes 114 registros, existem: i) os "grupos indígenas isolados", com os quais a Funai desenvolveu trabalhos sistemáticos de localização geográfica, que permitem não só comprovar sua existência, mas obter maiores informações sobre seu território e suas características socioculturais; ii) as "referências de índios isolados", que são os registros onde há fortes evidências da existência de determinado grupo indígena isolado, devidamente inseridos e qualificados no banco de dados, porém sem um trabalho sistematizado por parte da Coordenação- Geral de Índios Isolados da Funai que possa comprová-la; iii) as "informações de índios isolados", que são as informações sobre a existência de índios isolados devidamente registradas na Funai, ou seja, que passa por um processo de triagem, porém sem ter ainda recebido um estudo de qualificação.
Povos Indígenas Recém-Contatados
A Funai considera "de recente contato" aqueles povos ou grupos indígenas que mantêm relações de contato permanente e/ou intermitente com segmentos da sociedade nacional e que, independentemente do tempo de contato, apresentam singularidades em sua relação com a sociedade nacional e seletividade (autonomia) na incorporação de bens e serviços. São, portanto, grupos que mantêm fortalecidas suas formas de organização social e suas dinâmicas coletivas próprias, e que definem sua relação com o Estado e a sociedade nacional com alto grau de autonomia.
Ao longo dos séculos foi imposto aos povos indígenas um processo forçado de atração, contato e sedentarização, com vistas à sua proteção, que atendia também aos projetos de colonização regional para ocupação de áreas no interior do país.
Neste sentido, o Estatuto do Índio (Lei 6001/73) baseava-se na perspectiva de transitoriedade desses povos, com a "superação da condição indígena", por meio de sua integração ao modo de vida da sociedade nacional. Os indígenas eram categorizados segundo seu "grau de integração", de acordo com conceitos vigentes à época.
Todavia, em 1987 teve início a implantação de uma política diferenciada para povos indígenas isolados, com o objetivo de fazer respeitar seus modos de vida, afastando-se a concepção de obrigatoriedade do contato para sua proteção.
Superaram-se assim os ideários assimilacionistas até então vigentes, passando-se a prever o reconhecimento e a garantia da organização social, costumes, línguas, crenças, territorialidade e tradições dos povos indígenas, no âmbito do Estado democrático e pluriétnico de direito.
Hoje se observa que a aplicação de políticas assistencialistas e/ou universalizantes voltadas a alguns povos com contato recente produz efeitos colaterais desagregadores, especialmente para os povos que mantêm firmes suas formas de organização social e dinâmicas próprias de relações com o Estado e a sociedade nacional, motivando a formulação e a aplicação de políticas públicas diferenciadas, que propiciem, de forma condizente com estas especificidades, o acesso desses povos aos seus direitos sociais enquanto cidadãos brasileiros.
Constata-se que a vulnerabilidade física e sociocultural desses povos indígenas surge, ou é reforçada, em face da situação de contato e se agrava com:
• a ausência de ações diferenciadas e específicas de atenção à saúde e prevenção de doenças infectocontagiosas;
• a introdução de sistemas educacionais que não estão embasados em modelos metodológicos diferenciados e específicos, ou seja, que não atendem a uma relação de reconhecimento de outras formas de alteridade;
• a presença de missionários que desenvolvem o proselitismo religioso nas terras indígenas;
• a introdução de dinâmicas de uma economia de mercado e de consumo sem um processo de escuta aos povos indígenas quanto às expectativas e perspectivas dessas novas relações ou um acompanhamento que busque a valorização de suas próprias formas de organização socioeconômica.
Nesse cenário, o efetivo respeito às dinâmicas sociais indígenas em suas relações com a sociedade nacional exige que o Estado encare o desafio de implementar uma política indigenista não-assimilacionista, pautada na defesa de direitos dos povos indígenas, observadas as singularidades dos diversos grupos.
A nova estrutura da Funai, a partir do Decreto 7056/2009, substituído pelo 7778/2013, se insere no enfrentamento desse desafio de consolidar uma nova política indigenista com fundamento nos preceitos constitucionais.
Desse modo, o desafio da Funai no momento é avançar na consolidação de uma política de proteção para povos indígenas de recente contato, coordenando e articulando ações – junto aos povos indígenas de recente contato, órgãos públicos e instituições da sociedade civil – para mitigar a situação de vulnerabilidade a que estão expostos e assegurar as condições necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Atualmente, a Funai coordena e apoia ações de proteção e promoção em 19 terras indígenas habitadas por grupos indígenas de recente contato, como os Zo'é, Awá Guajá, Avá Canoeiro, Akun'tsu, Canôe, Piripkura, Arara da TI Cachoeira Seca, Araweté, Suruwahá e Yanomami, entre outros.