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Materiais ativos no mundo microscópico: quando a física contribui para transformar a saúde
Já se perguntou como os fluidos em miniatura são manipulados? Por que isso importa para diagnósticos, remédios e até para entender o comportamento de tecidos vivos? A física encontrou um jeito de transformar o caos microscópico em transporte útil e isso pode influenciar desde exames clínicos até a compreensão de como as células se movem em tecidos saudáveis e tumorais.
O artigo “Active nematic pumps”, publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (PNAS), apresenta materiais ativos que são sistemas feitos de muitas e pequenas unidades que consomem energia continuamente para se mover ou gerar forças. Nesses sistemas, cujas ações são autônomas e independem de ações externas, o comportamento coletivo é muito maior do que a soma das partes — surgem padrões, fluxos, alinhamentos e turbulências mesmo em escalas microscópicas.
Utilizando simulação de fluidos complexos e experimentos, um grupo de pesquisadores conseguiu demonstrar como escoamentos caóticos em sistemas vivos podem ser controlados de forma escalável e, mais importante, demonstrados experimentalmente.
A descoberta
“O principal achado da pesquisa é o de comprovar que é possível controlar e direcionar a turbulência de materiais ativos, um tipo de fluido composto por elementos que se movem continuamente, usando apenas arrays (matrizes, em tradução livre) de pilares rígidos com geometrias específicas. Mostramos que esses obstáculos organizam o fluxo ativo, transformando padrões caóticos em transporte direcionado”, apresenta Rodrigo Coelho, pesquisador teórico do Centro Brasileiro de Pesquisa Físicas (CBPF), e um dos autores do artigo.
A publicação, resultado de um estudo de cerca de dois anos e meio, foi possível graças a uma colaboração internacional envolvendo dois grupos de referência na área de matéria ativa. Os experimentos foram conduzidos pela equipe da Universidade de Barcelona, liderada por Jordi Ignés-Mullol, que desenvolveu a técnica de fotopolimerização e realizou as medições microscópicas. Na parte teórica, o grupo contou com a contribuição de Margarida Telo da Gama, professora da Universidade de Lisboa, especialista em cristais líquidos e matéria ativa.
Metodologia e tecnologia
Do lado computacional, foram utilizadas simulações de cristais líquidos ativos baseadas em um método híbrido de modelagem que permite reproduzir, com precisão, fenômenos hidrodinâmicos e topológicos que emergem em sistemas ativos, ajudando a prever quais arranjos de obstáculos poderiam realmente controlar o fluxo.
Sobre alguns dos desafios enfrentados no processo, Coelho destaca a parte numérica: “No lado das simulações, feitas por mim, foi necessário reformular o código e simplificar o modelo para conseguir simular sistemas grandes o suficiente, com resolução comparável à dos experimentos. Isso exigiu o uso intensivo de supercomputadores e exploração do espaço de parâmetros de parâmetros, além de um trabalho cuidadoso de ajustar escalas para que teoria e experimento realmente conversassem, algo que, para mim, representou um amadurecimento científico importante”.
Nos experimentos, foi empregada uma técnica inovadora que permite fotopolimerizar obstáculos diretamente dentro do fluido ativo, em tempo real. Diferentemente da microfluídica tradicional, em que paredes e canais são fixos, essa abordagem cria geometrias reconfiguráveis, permitindo alterar o “circuito” microfluídico enquanto o sistema está funcionando.

- Velocity field for initial active pump system forcing rightwards active flow. Crédito: retirado do artigo Active nematic pumps
Do lado experimental, os desafios foram igualmente relevantes: gerar padrões de luz precisos para fotopolimerizar os pilares dentro do fluido ativo, analisar corretamente os dados de microscopia para extrair o campo diretor do nemático e rastrear partículas microscópicas de forma confiável. “Esses avanços técnicos foram fundamentais para validar o fenômeno observado”, avalia Coelho.
Essas duas frentes — simulação realista e experimentação flexível — aproximam a física de aplicações concretas, especialmente em microfluídica para saúde, porque permitem projetar dispositivos microscópicos capazes de misturar, transportar ou manipular materiais biológicos de maneira controlada e biocompatível.
Aplicações
Mais do que um avanço teórico, o estudo aponta para uma mudança prática na forma de lidar com a vida em pequena escala. Ao controlar os materiais ativos, os pesquisadores mostram que é possível criar dispositivos que funcionam sozinhos, sem motores, bombas externas ou fontes de energia adicionais.
Na saúde, o estudo abre caminho para tecnologias que hoje são difíceis ou com alto custo financeiro para a implementação. “Esses mecanismos podem, no futuro, integrar plataformas de microfluídica para diagnóstico, entrega controlada de fármacos, preparação e mistura de reagentes, além de manipulação de materiais biológicos, sem causar danos às amostras. Além disso, mostramos que a turbulência ativa pode ser usada para realizar micromistura eficiente, oferecendo uma solução para um dos principais desafios de dispositivos miniaturizados utilizados em análises clínicas”, propõe Coelho.
Para além da medicina, sistemas que se movem e se reorganizam sozinhos podem inspirar materiais inteligentes, robótica e sensores que operam em ambientes onde mecanismos tradicionais não funcionam.
Esses desafios — computacionais, técnicos e metodológicos — são exatamente o que aproxima a pesquisa fundamental de aplicações reais. Por mostrar que já é possível transformar o caos em funcionalidade, a pesquisa amplia os cenários de aplicações e abre caminho para inovações que podem chegar ao cotidiano nos próximos anos.
Leia o artigo: https://www.pnas.org/doi/10.1073/pnas.2427103122

