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CIÊNCIA E ACOLHIMENTO
Paulo Ricardo Nunes: a construção de redes de apoio no enfrentamento ao HIV/Aids
Rio Grande (RS) – Quando os primeiros casos de Aids começaram a aparecer na cidade, no final da década de 1980, medo e desinformação eram tão devastadores quanto a própria doença. O psiquiatra e sanitarista Paulo Ricardo Nunes trouxe para Rio Grande sua experiência no movimento social e em serviços de referência no Rio de Janeiro. Servidor do Ministério da Saúde, ele atuou voluntariamente no HU-Furg, contribuindo para o atendimento humanizado de pacientes e na construção de políticas locais.
Além disso, Paulo auxiliou a criação do Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (Gapa) em Rio Grande, organização inspirada nas experiências de São Paulo e do Rio de Janeiro. O grupo nasceu como uma rede de acolhimento e resistência, levando informações sobre sexo seguro, apoiando pessoas vivendo com HIV e enfrentando, com coragem, o preconceito que marcavam aquele tempo. Nas palavras de Paulo, essa história ganha vida:
Como foi sua chegada ao HU-Furg e sua atuação como voluntário?
“Vim para Rio Grande com um pedido de licença de interesse do Ministério da Saúde e me coloquei à disposição do Hospital. Minha experiência em Psiquiatria e Saúde Pública, adquirida no Rio de Janeiro, foi fundamental para trabalhar com os primeiros casos aqui. Era um momento em que ninguém se aproximava dos pacientes, o nível de exclusão e de preconceito eram enormes. O Hospital precisava de apoio e eu queria contribuir.”
Quais eram os desafios daquele período?
“Além do desconhecimento científico sobre o HIV, havia um preconceito intenso. As campanhas públicas eram carregadas de estigma. Muitos pacientes chegavam em estado avançado, com medo de procurar atendimento. Não havia testes locais, nem acesso fácil a preservativos. Precisávamos, inclusive, pressionar os órgãos públicos. Nem Secretaria de Saúde havia, só um departamento na Secretaria Municipal de Gestão Social. Enfrentávamos grande dificuldade em transportar o material para análise: colhíamos as amostras aqui no Hospital e precisávamos levá-las de ônibus, em caixas com vidros, até o Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen) em Porto Alegre para realizar os testes de HIV. Era um esforço enorme, mas necessário para garantir o diagnóstico e o cuidado das pessoas.”
E como surgiu o Gapa em Rio Grande?
“Eu já tinha contato com o movimento social no Rio de Janeiro, com pessoas como o Betinho, da Associação Brasileira Interinstitucional Aids, e com o Paulo do Gapa de São Paulo. Quando cheguei aqui, percebi que enfrentávamos os mesmos problemas: famílias desassistidas, pessoas isoladas e alto preconceito. Então criamos o Gapa de Rio Grande, inspirado nessas experiências. Fui o primeiro presidente. Nossa missão era apoiar os pacientes, suas famílias e a comunidade, além de fortalecer a participação social na prevenção do HIV. O Gapa também desenvolvia projetos de pesquisa com caminhoneiros, campanhas educativas, apoio às famílias e orientação sobre prevenção. Era um trabalho conectando pacientes, comunidade e serviços de saúde. A experiência mostrou que não bastava atender somente os pacientes: era preciso envolver a sociedade e combater o preconceito, oferecendo informação e suporte social.”
Pode contar alguma história marcante desse período?
“Uma das memórias mais vivas foi a primeira campanha de prevenção durante o Carnaval de 1992. Recebemos do Ministério da Saúde uma caixa de preservativos e produzimos material educativo, em mimeógrafo, para distribuir nos bailes. Em um clube, fui detido porque as pessoas achavam que estávamos ‘excitando’ os frequentadores. Era o reflexo do preconceito da época. Lembro que algumas pessoas mostravam a aliança de casamento como se isso fosse protegê-las do HIV/Aids, achando que não precisavam se prevenir por estarem em um relacionamento estável. Mas seguimos firmes, porque acreditávamos que todos deveriam se proteger e ter acesso à informação.”
Como era o atendimento aos pacientes no HU-Furg?
“No Hospital, trabalhávamos diretamente com os pacientes internados, desenvolvendo estratégias de acolhimento, acompanhamento clínico e suporte psicossocial. Brincava com a Jussara que meu carro havia se transformado numa ambulância. As pessoas me ligavam, e eu ia buscá-las em casa, para facilitar o acesso. Esse contato direto era essencial para iniciar o tratamento e garantir dignidade e cuidado. Inclusive, anos mais tarde, encontrei pacientes jovens, que sobreviveram ao HIV/Aids graças ao acompanhamento e aos avanços do tratamento. Uma vez, no shopping em Porto Alegre, reconheci uma paciente que tinha recebido atendimento nosso. Hoje, ela vive com qualidade, o que mostra o impacto do trabalho de humanização e ciência. Foi emocionante perceber como nosso esforço transformou vidas.”
Como o HU-Furg evoluiu em termos de infectologia?
“A Infectologia nasceu junto com o Hospital e cresceu com ele. Quando cheguei em 1991, já havia um prédio do HU, mas os serviços estavam apenas começando. Hoje, o Hospital consolidou a Infectologia, ampliou laboratórios e criou ambulatórios especializados. Evoluímos muito em termos de estrutura, tecnologia e cuidado multiprofissional. A ciência também evoluiu muito e hoje temos tratamentos de qualidade, carga viral zerada, CD4 elevado e possibilidade de vida plena. Mas o estigma persiste. Ainda existem preconceitos em algumas campanhas e na sociedade. Precisamos continuar investindo em educação, prevenção, acolhimento e tratamento digno, garantindo qualidade de vida para todos.”
O que o trabalho no HU-Furg e no Gapa representou para você pessoal e profissionalmente?
“Foi uma oportunidade única de aprendizado e crescimento. O Hospital me deu sustentação para atuar com dedicação, compreender a importância da atenção multiprofissional e desenvolver habilidades em saúde pública. A experiência no Gapa e no HU-Furg influenciou minha trajetória, inclusive em cargos futuros, como a direção da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O mais importante foi perceber que a solidariedade e o conhecimento podem transformar vidas.”
Que mensagem gostaria de deixar para os profissionais atuais?
“Continuem fazendo o que estão fazendo. A tecnologia e os recursos atuais permitem melhorar cada vez mais o trabalho, mas é fundamental manter a dedicação, o cuidado e a humanização. Cada gesto de atenção ao paciente faz diferença.”
Sobre a Ebserh
O HU-Furg faz parte da Rede Ebserh desde julho de 2015. Vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a Ebserh foi criada em 2011 e, atualmente, administra 45 hospitais universitários federais, apoiando e impulsionando suas atividades por meio de uma gestão de excelência. Como hospitais vinculados a universidades federais, essas unidades têm características específicas: atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) ao mesmo tempo que apoiam a formação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de pesquisas e inovação.
Por Andreia Pires
Apoio de Leonardo Andrada de Mello/UCR15 e Alan Bastos/UAO5
Coordenadoria de Comunicação Social/Ebserh