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CIÊNCIA E ACOLHIMENTO
Nildo Eli Marques D´Avila: entre desafios e afeto no atendimento pediátrico do HIV
Rio Grande (RS) – No final da década de 1980, a chegada do HIV ao Brasil trouxe desafios sem precedentes para médicos, pacientes e famílias. Entre os profissionais que se dedicaram a enfrentar essa nova realidade estava o pediatra Nildo Eli Marques D’Avila, que atuou diretamente no atendimento das primeiras crianças infectadas em Rio Grande. Seu trabalho deu início a um acompanhamento pediátrico especializado, que permanece até hoje no SAE Infectologia do HU-Furg/Ebserh, com foco em crianças expostas ao vírus ou com infecções congênitas. Nildo lembra com emoção:
Como iniciou seu envolvimento com o atendimento de crianças vivendo com HIV?
“Era uma doença totalmente desconhecida, acreditamos ser importante estudar e entender como lidar com ela. Assim, começamos nosso trabalho no atendimento pediátrico quase que simultaneamente à criação do Serviço de HIV/Aids para adultos.”
Como foi o primeiro caso atendido?
“O primeiro atendimento envolveu uma criança, filha de mãe HIV positiva. A mãe estava hospitalizada e trouxe consigo a filha, que já estava infectada. Esse foi nosso primeiro contato direto, e começamos a estudar como manusear clinicamente e laboratorialmente essa criança. Naquela época, não havia protocolos nem literatura suficiente para nos basearmos. Era uma aprendizagem constante, feita passo a passo, observando, registrando e tentando oferecer algum apoio, ainda que limitado.”
Como eram realizados os atendimentos?
“Atendíamos no Serviço de Pronto Atendimento (SPA) do HU, em uma salinha destinada a casos mais urgentes. As crianças eram atendidas por marcação, principalmente aquelas expostas ao HIV ou cujos pais eram infectados. O trabalho exigia cuidado, paciência e observação detalhada, porque ainda não sabíamos quais seriam os efeitos da doença ou como ela se manifestaria. Aprendíamos com cada caso, buscando sempre oferecer o melhor suporte possível.”
Quando surgiram os primeiros tratamentos eficazes?
“A chegada do AZT (ou Zidovudina) foi um marco. Pela primeira vez, tínhamos uma substância capaz de melhorar a condição dos pacientes, mesmo com seus efeitos colaterais. Descobrimos que o uso do medicamento na mãe poderia proteger o bebê de nascer infectado. Isso mudou completamente nosso trabalho e trouxe esperança, mostrando que era possível, de fato, intervir na trajetória da doença.”
Como era a rotina de acompanhamento das crianças?
“No início, imaginávamos que seriam poucos casos, mas logo percebemos que o número era maior do que esperávamos. Registrávamos cada paciente, cuidando das fichas individualmente, e o laboratório se tornou essencial para confirmar diagnósticos. Entre 1989 e 1996, trabalhamos de forma meticulosa, garimpando informações clínicas e laboratoriais, aprendendo a diferenciar casos positivos de negativos. No começo, não havia sinais claros da doença, então cada exame era um passo fundamental no aprendizado.”
Como aprofundou essa experiência?
“Motivado pelo material clínico acumulado, decidi fazer meu mestrado, estudando crianças HIV positivas comparadas às negativas, analisando a presença de germes patológicos e outras diferenças. Foi um período intenso, de estudo noturno e dedicação extrema, mas trouxe enorme satisfação pessoal e científica. Foi ali que comecei a consolidar conhecimentos que servem até hoje de base para o acompanhamento pediátrico. Após entender melhor a doença, começou a fase de aprendizado externo. Participamos de congressos, palestras e intercâmbios, aprendendo com profissionais de renome e trazendo novas práticas para Rio Grande. Foi uma época empolgante, de expansão de conhecimento, contato com laboratórios e técnicas inovadoras, e de criação de vínculos profissionais que contribuíram para o desenvolvimento do Serviço no HU.”
Havia outros desafios?
“Não havia financiamento específico para o atendimento de crianças HIV positivas. Todo o trabalho era feito com dedicação pessoal e acadêmica, sem remuneração adicional. Precisávamos improvisar, criar protocolos e estruturas no Hospital para oferecer transfusões de imunoglobulina e outros tratamentos emergenciais. Foi um esforço coletivo, movido pela necessidade de salvar vidas e não por incentivos financeiros.”
Quanto tempo o senhor dedicou a essa área?
“Foram aproximadamente 20 anos dedicados exclusivamente ao atendimento pediátrico com foco em HIV. Durante esse período, concentrei-me quase integralmente nessa população, pois não havia outros profissionais interessados em Infectologia Pediatria. Foi uma dedicação intensa, guiada pela curiosidade e pela responsabilidade de cuidar de crianças em situação tão delicada.”
Como era acompanhar a evolução do tratamento?
“Assistir à evolução do vírus e ao surgimento de novos tratamentos foi gratificante. Inicialmente, a mortalidade era alta, e cada caso positivo representava um risco iminente. Com o tempo, aprendemos a manejar a doença e a aplicar os tratamentos corretamente, observando respostas positivas e a melhoria gradual da qualidade de vida das crianças. Foi emocionante ver esses pacientes crescerem e se desenvolverem, transformando a esperança em realidade concreta.”
Algum paciente marcou especialmente sua trajetória?
“Sim, houve uma menina que se tornou uma presença marcante em minha vida. Extremamente afetuosa, ela sempre buscava nossa companhia, mesmo quando não havia necessidade clínica. Passei tardes ao lado dela, conversando, oferecendo apoio e carinho. No último ano de vida, ela pediu para ficar em casa, recusando hospitalizações, e infelizmente faleceu alguns meses depois. Essa experiência foi dolorosa, mas reforçou o impacto emocional e humano do nosso trabalho. Além dela, muitos dos pacientes que atendemos, hoje, são adultos, vivendo com saúde razoável e levando uma vida quase normal, graças à continuidade do tratamento e ao acompanhamento adequado. Alguns se casaram, tiveram filhos, e mantêm contato comigo. Esse vínculo, que ultrapassa o consultório, é extremamente gratificante e confirma que o trabalho valeu a pena.”
Qual é a sua visão de futuro para o SAE Infectologia e para os pacientes?
“Minha visão de futuro é positiva, apesar de estar afastado do Serviço há algum tempo. Vejo com satisfação que profissionais competentes e dedicados deram continuidade ao atendimento, garantindo que as crianças e jovens tenham acompanhamento adequado.”
Como definiria o legado do SAE Infectologia em Pediatria?
“O legado é de cuidado, dedicação e aprendizado contínuo. Construímos uma base sólida para o acompanhamento de crianças expostas ao HIV, desenvolvendo práticas clínicas, pesquisa científica e vínculos humanos duradouros. O mais importante é ver que esses esforços transformaram vidas, oferecendo esperança, saúde e dignidade a crianças e famílias que enfrentaram uma doença assustadora e desconhecida. A mensagem que posso deixar é de perseverança e cuidado. Para os pacientes, seguir corretamente o tratamento garante qualidade de vida. Para os profissionais, a dedicação e o compromisso com o atendimento infantil são ações que fazem diferença real na vida das pessoas.”
Sobre a Ebserh
O HU-Furg faz parte da Rede Ebserh desde julho de 2015. Vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a Ebserh foi criada em 2011 e, atualmente, administra 45 hospitais universitários federais, apoiando e impulsionando suas atividades por meio de uma gestão de excelência. Como hospitais vinculados a universidades federais, essas unidades têm características específicas: atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) ao mesmo tempo que apoiam a formação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de pesquisas e inovação.
Por Andreia Pires
Apoio de Leonardo Andrada de Mello/UCR15 e Alan Bastos/UAO5
Coordenadoria de Comunicação Social/Ebserh