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CIÊNCIA E ACOLHIMENTO
Jussara Maria Silveira: dos primeiros atendimentos ao legado de 35 anos do SAE Infectologia
Rio Grande (RS) – A trajetória de Jussara Maria Silveira se entrelaça com a história do SAE Infectologia do HU-Furg desde os primeiros passos. No atendimento ao primeiro paciente com HIV no Hospital, ela viveu uma experiência que jamais esqueceria: ser, de certa forma, “residente” de sua própria residente, Maria Gabriela Mendoza Sassi. A bagagem que Gabriela trazia da França mudou os papéis e fez daquele momento uma troca rara, intensa e transformadora. Mais do que um atendimento, nasceu ali uma parceria que simbolizava o espírito do Serviço que estava começando: um espaço onde ciência e acolhimento caminham lado a lado, e onde vínculos humanos se tornam tão importantes quanto os avanços médicos. Confira o relato de Jussara:
Como foi começar a trabalhar com os primeiros casos de HIV aqui em Rio Grande?
“Fiz minha residência em Clínica Médica, depois trabalhei muitos anos com Medicina Interna. Quando surgiram os primeiros casos de HIV, comecei a me interessar pela Infectologia. Hoje sou doutora em Infectologia, mas não sou infectologista de formação. Formei-me em 1979, fiz residência, trabalhei também na medicina privada e percebi que aquele não era o caminho que eu queria seguir na minha vida. Surgiu uma vaga para professora, prestei concurso, tirei o primeiro lugar e comecei oficialmente em 1985. Dei aulas de Semiologia, Medicina Interna, trabalhei com residentes e na enfermaria.”
Como o vírus chegou a diferentes partes do mundo?
“O HIV é um retrovírus que deriva do SIV, o vírus do macaco. Ele passou para humanos na África Central, provavelmente no final do século XIX ou início do XX, ao longo do rio Congo. Com os movimentos migratórios, o vírus chegou ao Haiti e, de lá, aos Estados Unidos e Europa, atingindo cidades como Nova Iorque e São Francisco. Na França, houve o isolamento completo do vírus, que gerou muita discussão internacional.”
E como chegaram os primeiros pacientes com HIV?
“Inicialmente, o HIV atingia basicamente homossexuais masculinos, hemofílicos e pessoas que recebiam múltiplas transfusões, como pacientes com insuficiência renal crônica. Aqui em Rio Grande, o primeiro caso foi diferente: uma mulher, infectada por via sexual. Nos primeiros anos, muitos pacientes pertenciam a camadas com maior poder aquisitivo, pessoas que viajavam ao exterior. Enfrentávamos também, de forma muito intensa, o estigma social e o preconceito, que doíam tanto quanto a própria doença. O HU-Furg foi atípico desde o início, aqui o primeiro caso foi de uma mulher, profissional do sexo, que veio de São Paulo para Rio Grande para ficar próxima da família dela. Eu era preceptora de Clínica Médica, e minha residente era a Gabriela. Ela já tinha visto casos de Aids em Paris. Por isso, no primeiro atendimento, ela virou minha preceptora, e eu, a residente. Logo os casos começaram a aparecer com mais frequência e percebemos que precisávamos nos organizar.”
Como foi essa organização do Serviço?
“Não decidimos criar um Serviço de Infectologia de forma planejada. A demanda nos levou a isso. Começamos a nos juntar, estudar, discutir casos, chamar colegas de várias especialidades: pneumologistas, gastroenterologistas, oftalmologistas, dermatologistas, cirurgiões, tanto do HU quanto de consultórios particulares. A participação dos docentes e técnicos, do então Departamento de Patologia, foi essencial para o atendimento adequado desses pacientes, já que era lá que se fazia o diagnóstico das micobactérias, fungos e parasitas causadores de graves infecções oportunistas que levavam a longas e repetidas internações hospitalares. Gradualmente a equipe foi se consolidando. Conseguimos reconhecimento pelo Ministério da Saúde, recebemos repasses financeiros e estruturamos o atendimento.”
E como surgiu o Hospital-Dia?
“Com o aumento de casos, vimos a necessidade de oferecer tratamentos e exames sem a necessidade de internação completa. O Hospital-Dia permitiu isso: pacientes podiam vir para procedimentos e voltar para casa no mesmo dia. Foi um avanço enorme, melhorando a capacidade de atendimento e a qualidade de vida do paciente. Ainda hoje, ele garante exames importantes, como ressonâncias e punções, sem necessidade de internação prolongada.”
E Ala Rosa, como surgiu?
“A Ala Rosa nasceu da necessidade de ter um espaço maior e específico para pacientes com HIV. No início, dividíamos a Ala com a Nefrologia. Conseguimos verba de projetos do Ministério da Saúde e construímos a nova ala no final do Hospital, pintada originalmente de salmão. Mas, como havia muitos pacientes gays, o pessoal começou a chamar de Ala Rosa. Eu não aceitava, dizia: “Não é Ala Rosa, é salmão!”, mas a voz do povo ganhou, e ficou o nome popular. Essa iniciativa também refletiu uma visão de humanização do Hospital, algo que o então diretor Dr. Vicente Pias defendia desde o início.”
Como eram os primeiros atendimentos e os desafios clínicos?
“Nos anos 1980, o HIV era 100% fatal. Os pacientes eram jovens saudáveis, que, de repente, tinham uma doença gravíssima, sem tratamento eficaz. Infecções oportunistas eram comuns: pneumonias, tuberculose, neurotoxoplasmose, diarreias incontroláveis, retinites por citomegalovírus, candidíase severa. Antirretrovirais ainda não existiam ou eram pouco eficazes, como o AZT inicial. Tratamentos prolongados e internações frequentes eram a rotina. Era preciso atenção integral: Medicina, Psicologia, Psiquiatria, Nutrição, Fisioterapia – sem isso, não dava para lidar com o impacto da doença.”
Como o Serviço lidou com a evolução dos tratamentos?
“Vivemos a transformação do HIV causando uma doença com mortalidade de 100% para uma condição crônica controlável com um comprimido por dia. Isso foi possível graças à pesquisa, diagnóstico precoce e à equipe comprometida.”
Como a adesão ao tratamento mudou ao longo do tempo?
“A adesão sempre foi um dos maiores desafios. O HIV exige disciplina diária com medicamentos, diferente de outras doenças crônicas, onde você pode retomar o tratamento mais tarde. Se o paciente não toma corretamente os antirretrovirais, o vírus replica e pode se tornar resistente. Além disso, o estigma persiste, muitas vezes vindo do próprio paciente ou de familiares. Nosso trabalho envolve suporte psicológico e psiquiátrico, para que o paciente aceite o diagnóstico e siga o tratamento corretamente.”
Como a equipe multiprofissional contribuiu nesse cenário?
“Desde o início, a Enfermagem teve papel central. Rapidamente percebemos a necessidade de incorporar outros profissionais: nutricionistas, farmacêuticos, fisioterapeutas, assistentes sociais e psicólogos. As capacitações e o matriciamento com profissionais de outros municípios também foram fundamentais. Esse modelo de equipe multiprofissional sempre foi parte do DNA do SAE.”
Pode contar alguma memória marcante com pacientes?
“Uma das lembranças mais fortes foi permitir que um paciente fosse almoçar na casa da mãe, mesmo com diarreia intensa. Ele queria comer camarão antes de morrer. No dia seguinte, ele faleceu, mas aquele gesto foi um ato de humanidade. Outra memória emocionante é encontrar pacientes décadas depois, que hoje vivem com HIV graças ao acompanhamento e insistência para adesão ao tratamento.”
Como o SAE contribuiu para ensino e pesquisa?
“Desde o início, ensino e pesquisa foram fundamentais. Na verdade, o SAE sempre se baseou nos três pilares fundamentais da Universidade: ensino, pesquisa e extensão. Realizamos capacitações intensivas para profissionais de saúde de outros municípios, combinando teoria, prática em ambulatórios, hospital-dia e acompanhamento de pacientes hospitalizados. Vários profissionais do SAE tiveram oportunidades de intercâmbio internacional, com bolsas para França e Estados Unidos, fortalecendo conhecimentos e parcerias. Hoje o SAE é um importante colaborador dos programas de Pós-graduação na área da saúde da nossa Universidade.”
Como você vê o futuro do SAE Infectologia?
“Sou otimista. Espero que o Serviço continue crescendo, com ex-alunos retornando e incorporando novos profissionais. A base sempre será a combinação de ciência, ensino, pesquisa e humanização. A instituição deve ser maior que as pessoas, e o SAE se consolidou nesse princípio.”
O que o HIV ensinou a você?
“Ele me ensinou a abraçar a Medicina integral, a estudar constantemente, a valorizar o trabalho em equipe e a humanizar o atendimento. Cada paciente é uma história de aprendizado, e cada avanço científico melhora vidas. Trabalhar com HIV é um privilégio, porque permite testemunhar a transformação de uma doença devastadora em uma condição crônica controlável, mantendo a dignidade do paciente no centro.”
Hoje, mesmo aposentada, Jussara segue atendendo voluntariamente no SAE Infectologia.
Sobre a Ebserh
O HU-Furg faz parte da Rede Ebserh desde julho de 2015. Vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a Ebserh foi criada em 2011 e, atualmente, administra 45 hospitais universitários federais, apoiando e impulsionando suas atividades por meio de uma gestão de excelência. Como hospitais vinculados a universidades federais, essas unidades têm características específicas: atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) ao mesmo tempo que apoiam a formação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de pesquisas e inovação.
Por Andreia Pires
Apoio de Leonardo Andrada de Mello/UCR15 e Alan Bastos/UAO5
Coordenadoria de Comunicação Social/Ebserh