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CIÊNCIA E ACOLHIMENTO
Joice Simionato Vettorello: “Trabalhar com HIV é trabalhar com vulnerabilidade.”
Rio Grande (RS) – O SAE Infectologia do HU-Furg/Ebserh presta atendimento a pessoas vivendo com HIV/Aids, oferecendo acolhimento, tratamento e esperança. Entre as histórias que se entrelaçam nesses 35 anos de existência está a da enfermeira Joice Simionato Vettorello, que acompanha pacientes em diferentes fases da vida: do diagnóstico à conquista da estabilidade no tratamento. Atuando na área de adesão e Profilaxia Pré-exposição (PrEP), Joice fala sobre o significado de trabalhar com vulnerabilidade, os desafios de manter o vínculo com os pacientes e as transformações que o acolhimento pode gerar na vida de quem convive com o HIV. Acompanhe esse relato marcado por empatia, aprendizado e cuidado. Confira o relato completo:
Como chegou ao SAE Infectologia?
“Eu estava na Clínica Médica quando engravidei e, na época, recebi o convite para cobrir as férias de uma enfermeira do SAE. Vim e acabei ficando. Hoje sou enfermeira do Serviço e trabalho especialmente com adesão ao tratamento do HIV e com a PrEP, que é a Profilaxia Pré-exposição ao HIV com prescrição feita pela enfermeira.”
O que significa trabalhar com adesão?
“A adesão é o processo de vincular o paciente ao tratamento do HIV. É garantir que ele compreenda a importância de manter a medicação e o acompanhamento em dia. No SAE Infectologia, nós buscamos acolher e escutar cada pessoa, entendendo o que pode interferir na continuidade do cuidado. O vínculo é essencial para que o tratamento tenha sucesso.”
E como funciona o trabalho com a PrEP?
“A PrEP é uma estratégia relativamente nova, no Brasil existe desde 2018 e aqui, no HU-Furg, a prescrição é feita pela Enfermagem. Começamos a prescrever em dezembro de 2024, embora ela já existisse no serviço municipal. Hoje, a medicação é dispensada na Farmácia do SAE Infectologia. É uma oferta de cuidado que amplia a autonomia e o direito à prevenção. O público tem recebido muito bem, e o número de usuários cresce a cada mês.”
Como é o fluxo de atendimento no Serviço?
“Atendemos tanto por agendamento quanto por livre demanda. O agendamento foi implementado recentemente, mas quem chega sem consulta, especialmente se estiver em perda de segmento, ou seja, se deixou de usar a medicação, é atendido na hora. É uma forma de garantir que ninguém fique sem cuidado. No caso da PrEP, fazemos (a Enfermagem) atendimentos regulares às terças-feiras à tarde, mas também acolhemos quem não pode vir nesse horário.”
Os públicos da PrEP e da adesão são diferentes, certo?
“Sim, são distintos, e cada grupo exige uma abordagem personalizada. A pessoa que busca a PrEP está procurando se proteger do HIV antes de uma possível exposição, então o foco é prevenção, informação e empoderamento. É uma oportunidade de oferecer cuidado de forma proativa, explicando como a medicação funciona, os diferentes regimes e a importância do acompanhamento regular. Já o paciente em adesão já vive com HIV e precisa manter o tratamento de forma contínua, garantindo a supressão viral e reduzindo o risco de transmissão. Aqui, o diálogo se concentra em acolhimento, combate ao estigma e motivação para que ele veja que é possível ter uma vida plena e saudável, mesmo vivendo com a doença. O diferencial do nosso trabalho é que, em ambos os casos, cada pessoa é ouvida, cada contexto é respeitado e o cuidado não se limita ao medicamento. É um acompanhamento integral, que valoriza o vínculo, a confiança e a autonomia do paciente.”
O cuidado humanizado é algo muito presente no SAE. Como você trabalha isso no dia a dia?
“Trabalhar com HIV é trabalhar com vulnerabilidade. A pessoa chega fragilizada, muitas vezes com medo, culpa ou preconceitos internalizados. Se ela não for acolhida, se não se sentir confortável, pode não continuar o tratamento. Então, o acolhimento é essencial. A gente fala: ‘Vamos fazer esse tratamento juntos’. Mostramos que, com adesão, ela não transmite o vírus e pode viver normalmente. Muitas vezes, são conversas longas, que envolvem escuta e apoio. Cada história é única.”
Algum atendimento te marcou de forma especial?
“Teve um senhor que vive com HIV há muitos anos, com carga viral indetectável. Um dia, ele veio me perguntar sobre ‘o comprimidinho azul’, que é a PrEP. Achei que ele queria tomar, mas ele me surpreendeu: disse que queria trazer o neto para se proteger. Ele realmente trouxe o neto, que era extremamente bem-informado, e o mais bonito foi ver que grande parte desse conhecimento veio do próprio avô. Ele explicou para o neto sobre prevenção, cuidado e responsabilidade com a própria saúde. Para mim, aquilo foi mais do que apenas um atendimento: foi o cuidado se transformando em legado, uma transferência de experiência, informação e proteção entre gerações. Atendimentos como esse mostram que o trabalho no SAE não se limita à medicação ou à clínica; ele tem uma dimensão social e afetiva, porque possibilita que o conhecimento e a proteção se multipliquem, que o vínculo entre pacientes e equipe se torne uma ferramenta de prevenção e de esperança para toda a família.”
Você realizou seu doutorado aqui no SAE, certo?
“Meu doutorado foi totalmente desenvolvido aqui. Eu queria entender por que algumas pessoas mantinham o tratamento e outras não. Analisei 300 pacientes: 100 com carga viral suprimida e 200 sem supressão. E descobri algo que me marcou muito: o principal fator para a continuidade do tratamento não era escolaridade nem renda, mas o vínculo com o Serviço. Quanto melhor acolhido e mais bem informado o paciente se sente, maior é a adesão. Tive pacientes analfabetos com carga viral suprimida há anos, enquanto outros, com alto nível de escolaridade, interromperam o tratamento por não se sentirem acolhidos. O vínculo faz toda a diferença.”
E essa descoberta muda a forma de atender, não é?
“Com certeza. Durante a pesquisa, percebi que até detalhes aparentemente pequenos — como mudar de sala, de horário ou de profissional de referência — podem influenciar a adesão ao tratamento. Muitos pacientes desenvolvem um vínculo muito forte com os profissionais que acompanham sua trajetória, e sentem falta ou insegurança quando há mudanças. Isso evidencia que o cuidado humano é tão essencial quanto a medicação. O paciente precisa se sentir acolhido, ouvido e compreendido. Às vezes, ele admite: ‘Fiquei um tempo sem tomar o remédio, mas lembrei do que você me falou e voltei a seguir o tratamento’. Esse tipo de confiança, construída ao longo do tempo, sustenta todo o processo terapêutico. A partir dessa compreensão, ajustamos a forma de atender: planejamos continuidade no acompanhamento, reforçamos a comunicação clara e próxima e buscamos criar um ambiente de segurança e acolhimento. Assim, não estamos apenas tratando a doença, mas fortalecendo o paciente para que ele se torne protagonista da própria saúde, com autonomia e consciência sobre seu tratamento.”
O SAE completa 35 anos em 2025. Como você enxerga o futuro do Serviço?
“Acredito que o futuro vai trazer ainda mais avanços. Espero que um dia encontrem a cura, não apenas o tratamento. Mas, enquanto isso não acontece, desejo que cada pessoa vivendo com HIV tenha acesso à testagem e ao acompanhamento. Em Rio Grande, temos cerca de cinco mil pessoas vivendo com HIV, precisamos aumentar o número de testagens e de pessoas em prevenção. O futuro é cuidar mais e melhor.”
Que mensagem você deixaria para os colegas e pacientes?
“Eu diria que o cuidado com o HIV é, antes de tudo, um cuidado com o ser humano, com sua história, suas emoções e suas vulnerabilidades. Ninguém consegue ser aderente o tempo todo: a vida muda, surgem perdas, imprevistos, momentos de desânimo ou dificuldade. Por isso, é fundamental acolher cada pessoa sempre, sem julgamentos, oferecendo escuta ativa e compreensão. O tratamento é contínuo, mas sua continuidade depende da confiança que construímos com o paciente, do vínculo que se estabelece e da sensação de segurança que ele sente ao saber que não está sozinho. Trabalhar com HIV é, na prática, um aprendizado diário sobre empatia, paciência e a importância de caminhar junto. Cada consulta é uma oportunidade de fortalecer essa relação, de reforçar que é possível ter uma vida plena e saudável mesmo convivendo com o vírus. E para os colegas, reforço: nosso trabalho vai muito além da medicação: é sobre humanidade, atenção e cuidado integral. Essa é a base que permite que o paciente permaneça no tratamento e que o cuidado se transforme em saúde e esperança.”
Sobre a Ebserh
O HU-Furg faz parte da Rede Ebserh desde julho de 2015. Vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a Ebserh foi criada em 2011 e, atualmente, administra 45 hospitais universitários federais, apoiando e impulsionando suas atividades por meio de uma gestão de excelência. Como hospitais vinculados a universidades federais, essas unidades têm características específicas: atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) ao mesmo tempo que apoiam a formação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de pesquisas e inovação.
Por Andreia Pires
Apoio de Leonardo Andrada de Mello/UCR15 e Alan Bastos/UAO5
Coordenadoria de Comunicação Social/Ebserh