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CIÊNCIA E ACOLHIMENTO
Elaine Miranda Pinheiro: o acolhimento que marcou o SAE Infectologia
Rio Grande (RS) – “Eu só via a vulnerabilidade das pessoas!” Assim Elaine Miranda Pinheiro resume as mais de três décadas de dedicação ao HU-Furg/Ebserh, onde acompanhou o crescimento do SAE Infectologia. Entre atendimentos delicados, diagnósticos desafiadores e famílias em busca de apoio, Elaine se tornou referência em acolhimento. Seu olhar sempre atento acompanhou, orientou e transmitiu esperança a milhares de pacientes. Hoje aposentada, relembra com emoção os desafios, as histórias e os laços que transformaram sua trajetória profissional e a vida de quem passou por suas mãos. Acompanhe:
Como começou essa trajetória?
“Cheguei ao Hospital no meio de uma mudança importante. O HU estava saindo da área ocupada lá na Santa Casa e começando a ocupar o prédio atual, na época, ainda inacabado. Vim chamada pela coordenadora de Enfermagem para ajudar a montar o Bloco Cirúrgico, porque era preciso ter esse espaço para as clínicas funcionarem. Eu reuni todo o material que estava espalhado em salas improvisadas. Foi um desafio enorme, mas muito prazeroso, porque era algo novo. Eu estava no começo da carreira e tive a oportunidade de construir junto. Assim, minha história de vida se confunde com a história do HU. Passei mais tempo aqui dentro do que fora. Vi o Hospital crescer: quando cheguei, era uma criança; hoje é um jovem adulto. Sempre gostei do novo, de inovar, de criar para não cair na rotina. O HU me deu essa oportunidade.”
Como começou seu vínculo com a Infectologia e o atendimento a pessoas vivendo com HIV?
“Quando eu estava concluindo a formação em Enfermagem, participei do atendimento do primeiro paciente com HIV em Rio Grande. Ele tinha adoecido em São Paulo e voltou para cá, muito debilitado. Lembro que entrei no quarto para conversar com e não apenas espiar. Essa pessoa me disse que se sentia como os animais usados em experimentos científicos. Aquilo me marcou profundamente. Pouco depois, faleceu. A partir dali, me aproximei da Infectologia, participei de capacitações e fui me identificando com essa área. Nunca tive medo. Eu entendia o vírus, sabia como me proteger. Via os pacientes na sua vulnerabilidade, não como uma ameaça. Até hoje não suporto ver pessoas desamparadas. É da minha natureza querer fazer o bem.”
Você também teve um papel importante na prevenção e conscientização. Como era esse trabalho?
“Sempre gostei da parte preventiva. Dentro do SAE, eu era a pessoa que ia até a comunidade. Fazia palestras em escolas, empresas, Semanas Internas de Prevenção de Acidentes (Sipat), igrejas católicas e evangélicas, terreiros de Umbanda, no Exército, na Marinha... Onde me chamassem, eu ia. Até em um rebocador e num navio já falei. O objetivo era desmistificar o HIV, explicar que não era ‘câncer gay’, como se dizia na época, e reduzir o medo e o preconceito. Era um trabalho de formiguinha, mas muito gratificante.”
Como era dar um diagnóstico positivo de HIV?
“Foi muito difícil no começo. Não havia medicamentos eficazes, só tratávamos as doenças oportunistas. Depois, com a chegada dos antirretrovirais, mesmo ainda tóxicos, a situação começou a melhorar. A ciência avançou muito. Sempre tive apoio da equipe, especialmente da Dra. Jussara, que compartilhava todas as informações novas. Isso nos dava segurança para oferecer algo mais aos pacientes. Acredito que, na saúde, precisamos ser uma luz para as pessoas, caminhar com elas.”
Quantos pacientes você atendeu ao longo da carreira?
“Não sei exatamente, mas no consultório do SAE eu fazia em média 800 atendimentos por ano. Teve um ano que atendi 1.535 pessoas, sem contar as saídas para palestras e ações externas. O ano mais difícil foi 1998, quando vários pacientes que eu acompanhava há anos tiveram resultado positivo para HIV. Questionei muito se tinha falhado, mas entendi que ninguém é culpado. Cada um faz suas escolhas e precisamos respeitar isso.”
Algum caso marcante?
“Foram muitos. Ainda mantenho amizade com alguns pacientes que sobreviveram. Tem uma mãe que perdeu o filho para o HIV e, por anos, me trazia presentes no fim do ano. Guardo até hoje. Outro caso foi de uma família: a mãe e os filhos foram atendidos no SAE. O pai faleceu, mas convivemos muito próximos deles. Foi doloroso, mas também um aprendizado enorme. Um momento marcante foi quando recebi o telefonema da Dra. Jussara, me chamando para participar da primeira capacitação estadual sobre HIV. Na época, apenas algumas coordenadorias de saúde eram convidadas para essa capacitação, mas o HU-Furg foi incluído pelo grande número de pacientes atendidos na região. Eu estava no ambulatório do Hospital, trabalhando, quando ela ligou e me disse: ‘Elaine, queremos você lá, para representar nosso Hospital e aprender novas práticas de atendimento’. Foi um marco na minha carreira. Naquele instante, percebi que estávamos oficialmente inseridos no contexto estadual da luta contra o HIV, que nosso trabalho seria reconhecido e que eu teria a oportunidade de trazer novos conhecimentos para melhorar o atendimento dos pacientes. Foi como receber uma chave de entrada para fazer parte de algo maior, um passo importante na construção do SAE Infectologia como referência em cuidado, prevenção e humanização.”
Como foi acompanhar a evolução do tratamento do HIV?
“Foi maravilhoso. Quando me aposentei, senti que tinha cumprido minha missão. Hoje, um portador do vírus toma apenas um comprimido. No início era um coquetel de vários medicamentos, muitos efeitos colaterais. Hoje a pessoa pode ser portadora do HIV e ter uma vida normal. Isso é uma conquista da ciência e da luta de todos nós.”
Que mensagem você deixa?
“Quero falar para os pacientes e para os colegas que continuam no SAE Infectologia: acredito na vida depois da morte, acredito na reencarnação. Um dia vamos nos reunir todos para conversar sobre essa missão que nos foi dada e sobre o prazer que sentimos em ajudar e acolher cada pessoa que chega aqui. Para a nova geração, peço que se vejam como solução na vida das pessoas. Vocês têm saber, tecnologia, recursos. Usem tudo isso para transformar vidas, para ir além de um vírus. As pessoas que chegam aqui não são apenas portadoras de um diagnóstico; são seres humanos que precisam ser acolhidos, compreendidos e respeitados. É um trabalho que exige coração, atenção e humanidade, mas que também traz recompensas profundas. Isso é o que deixo como legado: cuidar com ciência, mas acima de tudo, com humanidade.”
Elaine também deixa um poema de Casimiro Cunha:
Às vezes, diz a Ciência
Que a crença é engano profundo,
Esperando uma outra vida
Noutros planos, noutro mundo…
E diz arrogante à Fé:
– “Estás louca! A morte apenas
É o sono eterno e tranquilo
Depois das lutas terrenas.”
Ao que ela replica, humilde:
– “Mais tarde, Ciência amiga,
Serás o sósia da Fé,
Andarás ao lado meu.
Se for sono, dormiremos,
Mas se não for, pois não é,
De quem será esse engano?
Será meu ou será teu?”
Sobre a Ebserh
O HU-Furg faz parte da Rede Ebserh desde julho de 2015. Vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a Ebserh foi criada em 2011 e, atualmente, administra 45 hospitais universitários federais, apoiando e impulsionando suas atividades por meio de uma gestão de excelência. Como hospitais vinculados a universidades federais, essas unidades têm características específicas: atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) ao mesmo tempo que apoiam a formação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de pesquisas e inovação.
Por Andreia Pires
Apoio de Leonardo Andrada de Mello/UCR15 e Alan Bastos/UAO5
Coordenadoria de Comunicação Social/Ebserh