Notícias
VIDAS DIGNAS
O cuidado que não termina: hospitais da Rede Ebserh mostram que o paliativismo é sobre a vida — “até o último instante”
Nesta matéria você vai ver:
Quando o foco deixa de ser a cura e passa a ser o cuidado;
A escuta que transforma;
Do medo à compreensão: quebrando o tabu;
Quando o cuidado continua em quem fica.
Brasília (DF)- Mais de 56 milhões de pessoas ao redor do mundo necessitam de cuidados paliativos a cada ano — o equivalente à população de um país inteiro como a Itália. No entanto, apenas 14% têm acesso a esse direito humano essencial. Os hospitais administrados pela Rede Ebserh vêm se destacando ao oferecer esse tipo de cuidado de forma integrada, gratuita e humanizada — reafirmando o compromisso público com a dignidade e com o tema global deste ano: “Cumprindo a Promessa: Acesso Universal aos Cuidados Paliativos”.
Em todo o mundo, ainda é comum associar os cuidados paliativos à ideia de “fim de linha” — um equívoco que atravessa culturas e sistemas de saúde. Os especialistas ouvidos nesta reportagem concordam que, na realidade, o paliativismo é uma abordagem ativa, que transforma a jornada de pacientes e famílias desde o diagnóstico, aliviando dores invisíveis e oferecendo suporte integral.
No Brasil, estimativas oficiais indicam que cerca de 600 a 650 mil pessoas precisam de cuidados paliativos a cada ano, segundo o Ministério da Saúde.
Quando o foco deixa de ser a cura e passa a ser o cuidado
Para Rosângela Silva Rigo, médica e uma das responsáveis pelos cuidados paliativos do Hospital Universitário Maria Aparecida Pedrossian (Humap-UFMS/Ebserh), o primeiro passo é compreender que o paliativismo não se restringe à fase final da vida. “São uma modalidade de tratamento não curativo, exercida por equipe multidisciplinar com foco na pessoa e em sua família, com o objetivo de minimizar o sofrimento causado por doenças crônicas e progressivas, desde o diagnóstico”, explica.
A transformação é profunda: muda-se o eixo da cura para o cuidado. “O paciente é visto como um ser biopsicossocial e espiritual, que precisa de diferentes saberes e olhares. O objetivo é que ele viva da melhor forma possível até sua partida, e que a família também seja acolhida e preparada para o processo de perda”, afirma.
Segundo Rosângela, o avanço da Política Nacional de Cuidados Paliativos deve contribuir para que o atendimento seja garantido em todos os níveis do SUS. “Ainda existem muitos tabus — como o de que paliativo é abandono terapêutico —, mas essa visão está mudando. Quando o cuidado paliativo é introduzido cedo, a equipe trabalha de forma mais integrada, a comunicação é mais compassiva e há mais satisfação profissional. O paciente tem autonomia para planejar sua trajetória e a família se sente mais amparada e menos sozinha”, explica.
A escuta que transforma
O Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG-Unirio) tem uma Comissão de Cuidados Paliativos. “Quando uma pessoa recebe um diagnóstico de doença grave, tudo é afetado — não apenas o corpo, mas o emocional, a família, os papéis sociais, a fé, o sentido da vida. O cuidado paliativo existe para olhar para tudo isso. Ele tem um olhar centrado na pessoa e seus valores, para além da doença”, explica a médica e atual coordenadora da Comissão, Simone Cotrim.
A equipe pode ser consultada por qualquer setor do hospital: equipes clínicas, cirúrgicas, terapia intensiva e unidades de Pediatria e de Neonatologia. Cada parecer é um convite à escuta ativa. “Costumamos fazer a pergunta da Dignidade (descrita por *Harvey Chochinov): o que eu preciso saber sobre você, como pessoa, para te oferecer o melhor cuidado possível? As respostas são diversas e reveladoras. Alguns dizem: ‘não gosto que mintam pra mim’; outros pedem que saibamos que são vaidosos ou que querem ajudar os outros até o fim. São detalhes que humanizam a relação e mudam a maneira de cuidar”, continua Simone.
O grupo, formado por médicos, psicóloga, fisioterapeutas, nutricionista, assistente social e profissional de educação física, trabalha para reduzir sofrimentos que vão além da dor física. “Há pacientes por exemplo, que não sentem dor, mas se sentem indignos, desmoralizados, sem propósito. A gente ajuda a reconstruir esse sentido. O cuidado paliativo é, um exercício de compaixão — auxilia o paciente a sentir-se vivo até o último instante”, informa a médica.
Do medo à compreensão: quebrando o tabu
Simone reconhece que a palavra “paliativo” ainda é mal interpretada e cercada de tabus. “No passado, os pacientes só eram encaminhados quando não havia mais opções de tratamentos para a doença, como, por exemplo, quimioterapia ou radioterapia para pacientes com câncer. Isso gerava a sensação de desistência. Hoje, a visão é de que o cuidado paliativo deve integrar-se ao tratamento”, explica.
Essa mudança de paradigma se reflete na rotina do hospital. Atualmente, mais de cem pacientes são acompanhados pela equipe. Quando o trabalho é explicado, muitos se sentem aliviados. Percebem que o objetivo não é antecipar o fim, mas garantir que o caminho até ele seja digno, consciente e com o menor sofrimento possível.
A palavra que embasa essa abordagem vem do latim, pallium, — manto protetor usado por guerreiros durante as cruzadas. “É uma metáfora perfeita”, resume Simone. “A doença é uma intempérie. O cuidado paliativo é o manto que protege do sofrimento, do frio da solidão, da dor e do medo”. Em cada uma dessas histórias, a linha entre vida e morte deixa de ser um limite e passa a ser um espaço de cuidado compartilhado.
Quando o cuidado continua em quem fica
A história de dona Célia Regina é uma dessas trajetórias em que o cuidado se converte em renascimento — e depois em legado. Diagnosticada com mieloma múltiplo em 2020, enfrentou uma rotina de internações e quimioterapias que, mais do que enfraquecer o corpo, começaram a roubar-lhe a alegria e a autonomia. Foi nesse momento que a Comissão de Cuidados Paliativos do HUGG passou a acompanhá-la.
A filha, Adriana Arom, recorda o momento em que percebeu a mudança de rumo. Ela conta que, durante uma conversa com a equipe, compreendeu que o objetivo já não era insistir em um tratamento que só agravava o sofrimento, mas oferecer à mãe uma vida possível e digna. “Eu percebi que queriam resgatar minha mãe de uma situação de muita dor física e emocional. Era como se ela estivesse se afogando, e a equipe tivesse ido lá tirá-la da água”, relata.
Quando o tratamento passou a focar o conforto, em vez da quimioterapia agressiva, dona Célia “ressurgiu das cinzas”. “Minha mãe começou a andar, a sorrir, a querer sair. Um dia fui buscá-la no mercado — estava lá, de batom, conversando com a vizinha, toda serelepe. Voltou a se arrumar, a se olhar no espelho. Parecia outra pessoa”. Foram oito meses de vida com dignidade. “Ela retomou a cor, o brilho, os gostos. Coisas simples, como ir ao shopping ou molhar os pés na praia, viraram celebrações. Foi como se minha mãe tivesse ressuscitado”, conta Adriana.
Após o falecimento de dona Célia, a filha recebeu um convite para participar do Palidrama, projeto do hospital que usa dramatizações para capacitar profissionais na comunicação de notícias difíceis. “A primeira cena que fiz foi inspirada na minha mãe — uma paciente que só queria comer pipoca. Revivi tudo, mas de uma forma leve, alegre. Foi libertador”. Hoje, Adriana é voluntária fixa do projeto, ajudando profissionais e alunos a compreenderem, na prática, o peso e a beleza da empatia. “Eu achava que minha mãe tinha ido embora, mas ela ficou em mim. No Palidrama, eu vejo que o cuidado continua — muda de forma, mas não acaba”.
Para Simone, histórias como essa traduzem o verdadeiro sentido do paliativismo. “O cuidado não termina com a morte do paciente. Ele continua nos familiares, nos vínculos, nas transformações que ficam. É o que dá sentido ao que fazemos”.
Mais do que aliviar a dor, os cuidados paliativos reafirmam o que há de mais essencial na Medicina — e na humanidade: a capacidade de cuidar, mesmo quando não é possível curar.
Sobre a Ebserh
Vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a Ebserh foi criada em 2011 e, atualmente, administra 45 hospitais universitários federais, apoiando e impulsionando suas atividades por meio de uma gestão de excelência. Como hospitais vinculados a universidades federais, essas unidades têm características específicas: atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) ao mesmo tempo que apoiam a formação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de pesquisas e inovação.