Entrevista concedida pelo Presidente Lula ao Jornal Nacional
DELIS ORTIZ – Boa noite, presidente.
PRESIDENTE LULA – Boa noite, Delis.
DELIS ORTIZ – A primeira pergunta é de ordem prática. O senhor mencionou a Lei da Reciprocidade mesmo com ameaça explícita do presidente Trump [Donald Trump, presidente dos Estados Unidos da América] de responder com mais tarifas a qualquer taxação decidida pelo Brasil. Como é que o seu governo pretende escapar desse círculo?
PRESIDENTE LULA – Primeiro, é importante levar em conta que há algumas coisas que um ser humano e um governo não podem admitir. É a ingerência de um país na soberania de outro. E, mais grave, a intromissão de um presidente de um país no poder judiciário do meu país.
É inaceitável que o presidente Trump mande uma carta pelo site dele, em que começa dizendo que é preciso acabar com a caça às bruxas. Isso é inadmissível. Primeiro porque isso aqui tem justiça e a gente está fazendo um processo com direito à presunção de inocência de quem é vítima. Se quem é vítima cometeu um erro, vai ser punido. Aqui no Brasil é punido.
A segunda coisa é que é inverossímil o fato pelo o qual se aumentou a tarifa. O presidente Donald Trump deve estar muito mal informado, porque nos últimos 15 anos o déficit para o Brasil é de R$ 410 bilhões entre comércio e tarifas. Portanto, não existe explicação a não ser uma falta de informação. E, depois, tentando atrapalhar uma relação muito virtuosa que o Brasil tem com os Estados Unidos há 200 anos.
O que eu vou fazer, na verdade? Primeiro, eu não perco a calma e não tomo decisão com 39° graus de febre. O Brasil utilizará a Lei da Reciprocidade quando necessário. E o Brasil vai tentar, junto à OMC, com outros países, tentar fazer com que a OMC tome uma posição para saber quem é que está certo ou errado.
A partir daí, se não houver solução, nós vamos entrar com a reciprocidade já a partir de 1º de agosto, quando ele começa a taxar o Brasil. Nós entendemos que o Brasil é um país que não tem contencioso com ninguém. Nós não queremos brigar com ninguém. Nós queremos negociar. E o que nós queremos é que sejam respeitadas as decisões brasileiras.
Portanto, se ele ficar brincando de taxação, vai ser infinita essa taxação. Nós vamos chegar a milhões e milhões e milhões de por cento de taxa. O que o Brasil não aceita é intromissão nas coisas do Brasil. Ele tem o direito de tomar decisão em defesa do país dele, mas com base na verdade.
Se alguém orientou ele com a mentira de que os Estados Unidos é deficitário com um país, mentiu. Porque os Estados Unidos é superavitário na relação comercial com o Brasil.
DELIS ORTIZ – A motivação política desse ataque americano é explícita e Trump critica o julgamento de Jair Bolsonaro [ex-presidente da República] e ações no Supremo sobre as plataformas de redes sociais. Mas, os ataques de Donald Trump começaram durante o encontro do BRICS e depois das declarações do senhor em tom crítico aos Estados Unidos durante o evento. Que papel o senhor atribui às suas declarações nas motivações do presidente americano?
PRESIDENTE LULA – Nenhuma. Veja, primeiro, o BRICS é um fórum que ocupa hoje metade da população mundial e quase 30% do PIB mundial. E dentro do BRICS estão países que participam do G20. Dez países do BRICS participam do G20, onde o senhor Trump participa. Segunda coisa: nós temos quatro países que foram convidados para o G7 agora. Brasil, México, África do Sul e Índia.
Quarta coisa: o BRICS é um agrupamento de países que trabalham em prol do Sul Global. Nós cansamos de ser subordinados ao Norte. Nós queremos ter independência nas nossas políticas, queremos fazer comércio mais livre. E as coisas estão acontecendo de forma maravilhosa.
As coisas vão continuar melhorando. E nós estamos discutindo inclusive a possibilidade de ter uma moeda própria ou, quem sabe, com as moedas de cada país, a gente fazer comércio sem precisar utilizar o dólar. Porque não temos a máquina de rodar dólar, só os Estados Unidos que tem. E nós não precisamos disso para fazer comércio exterior.
Agora, achar que o BRICS é a razão pela qual o Trump ficou nervoso... O Brasil nunca ficou nervoso com a participação do G7. O Brasil nunca ficou nervoso com as coisas que os Estados Unidos fazem. Cada país tem soberania de fazer aquilo que quer.
Então, eu penso que o presidente Trump precisa se cercar de pessoas que o informem corretamente sobre como é virtuosa a relação Brasil-Estados Unidos.
DELIS ORTIZ – O senhor criticou Donald Trump por ingerência em questões que firam a independência das instituições brasileiras. Mas o senhor recebeu críticas por visitar a ex-presidente argentina Cristina Kirchner, condenada por corrupção, e por defender a liberdade dela. Como o senhor responde a essas acusações de ter interferido nas questões internas de um país soberano?
PRESIDENTE LULA – Com muita firmeza. Eu fui visitar a presidenta Cristina com a autorização da justiça argentina. Eu só fui lá porque a justiça argentina decidiu que eu fosse visitar, atendendo a um pedido da própria Cristina.
E eu fui fazer uma visita humanitária. Eu nunca me preocupei que o Trump recebesse o Bolsonaro ou qualquer pessoa. É direito de cada presidente fazer o que quiser.
O que não é direito é um presidente querer dar palpite na decisão de justiça de um país. Aqui no Brasil, a nossa justiça tem autonomia. O Poder Judiciário é um poder autônomo, como é o Legislativo. E aqui a gente obedece regras.
O que o presidente Trump tem que saber é que se aqui no Brasil ele tivesse feito o que ele fez nos Estados Unidos com as eleições, ele também estaria sendo processado. Estaria sendo julgado. E se fosse culpado, ele seria preso.
É assim que funciona a lei para todo mundo. Ou seja, nós precisamos aprender a respeitar. Você nunca viu eu me meter numa decisão de justiça americana. Nunca. E o que eu espero é reciprocidade, que ele também não se meta nos problemas brasileiros.
DELIS ORTIZ – Esse ataque americano às exportações brasileiras levantou preocupações enormes nas empresas exportadoras. Que papel o senhor espera que esses setores empresariais desempenhem na formulação de uma resposta do governo aos Estados Unidos?
PRESIDENTE LULA – É só importante a gente deixar claro para a opinião pública que não é uma taxação ao Brasil. Ele vem taxando todos os países do mundo desde que tomou posse. É um direito dele, mas é um direito dos países reagirem.
Olha, o que eu pretendo fazer? Primeiro eu pretendo reunir todos os empresários que têm exportações para os Estados Unidos. Sobretudo aqueles que têm maior volume de exportações, suco de laranja, aço, a Embraer que exporta muito para os Estados Unidos. Para conversar para ver qual é a situação deles. Nós vamos tentar fazer todo o processo de negociação que for possível fazer.
O Brasil gosta de negociar, o Brasil não gosta de contencioso. E depois que se esgotarem as negociações, o Brasil vai aplicar a Lei da Reciprocidade. E aí, os empresários, eu espero que estejam aliados ao governo brasileiro.
Porque se existir algum empresário que ache que o governo brasileiro tem que ceder e fazer tudo o que o presidente do outro país quer, sinceramente, esse cidadão não tem nenhum orgulho de ser brasileiro. Essa é a hora da gente mostrar que o Brasil quer ser respeitado no mundo. Que o Brasil é um país que não tem contencioso com nenhum país do mundo. E que, portanto, a gente não aceita desaforamento contra o Brasil.
DELIS ORTIZ – Aqui para encerrar, presidente. O presidente Donald Trump está na Casa Branca há sete meses. Por que motivo o governo do senhor não fez nenhum movimento para estabelecer contato direto, mais próximo com o governo do nosso segundo maior parceiro comercial?
PRESIDENTE LULA – Primeiro, eu mandei uma carta dando os parabéns à vitória do Trump. Eu não tinha que conversar com o Trump até agora, não tinha nenhuma razão. Eu imaginei encontrar com o Trump no G7. Quando nós chegamos lá, ele tinha saído. Porque a reunião foi feita num lugar muito escondido, porque o Trump não seria bem recebido no Canadá. Então, quando eu cheguei, eu e os convidados, eu e o primeiro-ministro Modi [Narendra Modi, primeiro-ministro da Índia], a Claudia [Sheinbaum], presidente do México, e o Ramaphosa [Cyril Ramaphosa], presidente da África do Sul, quando nós chegamos lá, o Trump tinha ido embora na outra noite.
Na hora que houver necessidade de conversar com o Trump, eu não tenho nenhum problema de ligar para ele, como eu já liguei para o Clinton [Bill Clinton, ex-presidente dos EUA], já liguei para o Bush [George W. Bush, ex-presidente dos EUA], já liguei para o Obama [Barack Obama, ex-presidente dos EUA], já liguei para o Biden [Joe Biden, ex-presidente dos EUA]. Agora, é preciso ter uma razão para ligar. Dois presidentes não ficam ligando para contar piada. Ele, por exemplo, poderia ter ligado para o Brasil para dizer da medida que ele vai tomar.
Ele não mandou nenhuma carta. Nós não recebemos carta. Ele publicou no site dele. Uma total falta de respeito, que é um comportamento dele com todo mundo. E eu não sou obrigado a aceitar esse comportamento desrespeitoso entre relações de chefes de Estado, entre relações humanas. Educação é bom. E a gente gosta de receber e gosta de dar.
E o Brasil quer ser bem tratado. Quando eu tiver um assunto sério para tratar com os Estados Unidos, eu não terei nenhum problema de pegar o telefone e ligar para a Casa Branca pedindo para conversar com o presidente Trump. Por enquanto eu não tenho.
DELIS ORTIZ – [Agora] Não é o caso?
PRESIDENTE LULA – Agora veja, é o seguinte: nós vamos criar uma comissão de negociação juntando empresários e o governo. Vamos ver quais são as decisões, quem é afetado, como é que vai ser afetado, como é que a gente pode procurar novos mercados. E eu mesmo vou procurar novos mercados para os produtos brasileiros.
Esse é o meu papel. Inclusive, dizer aos empresários: “vamos juntos abrir novos mercados”. Porque não é fácil, sabe, ele só taxar os outros. Porque ele também terá consequência nos Estados Unidos. Então, assim, Delis, a relação entre dois Estados, ela tem que ser uma coisa respeitosa.
Um presidente, ele não é dono da verdade. Um presidente não tem relação ideológica com o outro. Eu nunca tive relação ideológica. Eu converso com o presidente do país, seja ele quem for. Ele foi eleito pelo povo e, se precisar conversar, eu converso com todo mundo. Nunca, nunca tive um veto. Agora, eu não tenho nada para conversar com o Trump.
Aliás, ele não dá motivo para que a gente tenha nada para conversar com ele. Depois que a gente discutir profundamente o que vai acontecer, nós temos tempo para discutir, nós temos tempo para conversar, nós temos tempo para ouvir os empresários, nós temos tempo para ouvir a OMC, para ouvir outros países, como é que estão acontecendo. E quando chegar o momento, se for necessário conversar, pode ficar certa, que eu não terei nenhum problema de pegar o telefone e ligar.
Correndo o risco de ele, de forma mal educada, não querer me atender. Eu corro o risco, mas de qualquer forma, se for necessário, eu faria isso sem nenhum problema.
DELIS ORTIZ – Por agora, nada?
PRESIDENTE LULA – Por agora, nada.
DELIS ORTIZ – Nem chamar a embaixadora?
PRESIDENTE LULA – Não sei. Aí é um problema que o Itamaraty vai ter que tomar essas decisões. Eu acho que era importante chamar a embaixadora para tomar informações. Mas é um problema que depende da decisão do Itamaraty. Eu acho que o ministro Mauro Vieira [ministro das Relações Exteriores] saberá cuidar disso.
O que eu acho um desaforo muito grande, Delis, e não dá para aceitar, é um cidadão, presidente de um país importante como os Estados Unidos, enviar uma carta para mim, mandada por um site, avocando o fim das “caças às bruxas” a um ex-presidente que tentou dar um golpe neste país. Ele não tentou dar o golpe, ele tentou preparar a minha morte, a morte do presidente da Suprema Corte, que na época era o Alexandre de Moraes, a morte do vice-presidente.
E não é ninguém da oposição que está falando, são os militares que estavam com ele. É o ajudante de ordens dele que recebia as informações deles. Agora, quem vai ser julgado não é o cidadão Bolsonaro, quem vai ser julgado são os autos do processo. Se ele tiver razão, será absolvido. Se ele não tiver razão, ele será condenado. E se condenado, vai ser preso. É assim que funciona a justiça no Brasil.
E é assim que eu espero que funcione nos Estados Unidos. Se tivesse um Capitólio aqui, e o Bolsonaro tivesse feito o que fez o Trump nos Estados Unidos, ele também teria sido julgado. Porque a lei aqui no Brasil é para todos, de verdade. Doa a quem doer.