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INFORME Nº 3 – REDE COVID-19 HUMANIDADES MCTI
A Rede Vírus MCTI comunica que a Rede Covid-19 Humanidades MCTI, liderada pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em colaboração com a Fiocruz, o InCT Brasil Plural - UFSC, a UnB, a Unicamp, a UNIDAVI e a UFRN, tem desenvolvido pesquisas qualitativas sobre os impactos sociais da pandemia entre profissionais de saúde e população em isolamento. O eixo de atuação sobre população em isolamento desenvolve pesquisas entre diferentes populações, como idosos, artistas, motoristas e entregadores por aplicativo e trabalhadores do setor frigorífico.
O estudo sobre a população idosa em isolamento tem sido desenvolvido através de um estudo longitudinal, com entrevistas remotas e periódicas com pessoas de 60 anos ou mais que mantinham uma vida ativa antes da pandemia. A maioria participava de grupos de sociabilidade com outros idosos, o que incluía a prática de atividades físicas, de lazer, religiosas, entre outras. As entrevistas seguem roteiros pré-estruturados de questões, centrados nas percepções sobre o risco, nas práticas dos idosos relativas à pandemia, bem como nas redes formais e informais de proteção com as quais eles contam (ou não) e nos sentidos evocados pelos entrevistados sobre a pandemia. Os dados obtidos por meio das entrevistas e coleta de narrativas realizadas de forma remota, entre julho de 2020 e maio de 2021, apontam:
a) No primeiro ano da pandemia, nota-se que houve uma diminuição significativa do contato intrageracional, realizado pelos idosos através de suas redes de pertencimento comunitários, religiosos e de sociabilidade e um aumento das relações intergeracionais familiares. Tais relações intergeracionais familiares foram realizadas no intuito de prevenção e proteção aos riscos à pandemia, dando-se através do auxílio de filhos e netos para compra de gêneros alimentícios, remédios e outras ações necessárias para continuação da vida.
b) Neste processo, percebeu-se também uma modificação significativa nas dinâmicas familiares de habitação das casas, realizada para proporcionar formas ativas de proteção contra a contaminação pelo vírus e atenuação dos riscos provocados pela pandemia. Algumas das transformações observadas na vida dos idosos foram a inclusão de familiares à unidade doméstica em que habitavam ou deslocamento das pessoas idosas para outras casas, como a de filhos e netos. As casas tornaram-se importantes infraestruturas de cuidado no cenário de vulnerabilidade sanitária provocado pela pandemia, revelando a importância do espaço doméstico e familiar no cenário social e político da pandemia;
c) Essa modificação das dinâmicas de habitação das casas representou, em alguns casos, o aumento de trabalho e despesas para manutenção da casa, sendo os idosos uma população ativa na manutenção das condições sociais e econômicas necessárias à reprodução da vida de certos membros de suas famílias, como filhos e netos. Tal dinâmica, muitas vezes possibilitada pela garantia da estabilidade financeira proporcionada pelo recebimento de aposentadoria, ficou completamente obscurecida pelos frequentes memes e piadas publicadas em redes sociais, que associaram – sobretudo no primeiro ano da pandemia – a população de idosos com aspectos infantilizadores e animalizadores (vide, por exemplo, a noção do caminhão “cata-véio”);
d) Em tais materiais, o envelhecimento foi produzido como sinônimo de perda de autonomia e dependência, sendo o cuidado de idosos visto como uma atividade de controle coercitivo, o que destituiu discursivamente essa população dos atributos da racionalidade e da autonomia. Essa discursividade põe em questão o ideário do envelhecimento ativo que vem sendo constituído internacional e nacionalmente como uma política de referência para este grupo etário.
e) De modo geral, a população de idosos pesquisada sentiu-se vulnerável ao maior controle público e familiar de suas atividades, desenvolvendo um incômodo significativo com as medidas restritivas dirigidas ao seu grupo etário, baseadas na noção de “grupo de risco”; foram importantes os relatos de tristeza, depressão e sentimentos de injustiça associados a essa dimensão, principalmente efetivados entre a população dos 60 aos 70 anos de idade, que muitas vezes mantinha vínculos ativos de trabalho e autonomia, previamente à pandemia;
f) Mais do que por seu caráter exclusivamente normativo associado à idade cronológica, a pesquisa tem mostrado que o envelhecimento e a gestão dos perigos associados à infecção por Covid-19 são melhor compreendidos a partir das relações entre os sujeitos, seus vínculos familiares, vicinais e redes de cuidado; nesse sentido, importam as relações de trabalho, familiares, religiosas e comunitárias. Na imbricação de tais relações, percebe-se processos de interdependências familiares e relações de vizinhança que são formas de suporte nas quais os sujeitos desenvolveram e negociaram as suas capacidades para continuar, reparar e viver o mundo da melhor forma possível.
g) Apesar de seu caráter “extraordinário”, a incorporação da pandemia como evento particular nas vidas das pessoas parece ter ocorrido, fundamentalmente, através das pequenas mudanças no cotidiano: novas rotinas de limpeza, introdução de novos produtos como álcool em gel e máscaras e novas formas de interação com o uso de tecnologias digitais. Embora tenham acrescentado tais elementos nos seus cotidianos, a constituição de uma rotinização de tais atividades provocou certo sentido que “nada mudou”, “não mudou quase nada”. Tais expressões foram inicialmente referidas no início das entrevistas, contrastando com seu desenvolvimento, em que uma série de modificações foram elencadas, fundamentais para a reabitação do cotidiano e continuidade da vida;
h) A expansão da pandemia em sua dimensão temporal também correspondeu certa saturação do tema, percebida por grande parte das pessoas entrevistadas. Alguns referiram a preferência por não acompanhar notícias e noticiários sobre o assunto, vistos muitas vezes com desconfiança em relação à veracidade das informações apresentadas, para evitar depressão e negatividade associada à vivência da pandemia. Temos aqui uma situação em que se associa a maior difusão e multiplicação de informações com o menor interesse pelo tema, situação que parece ter acompanhado um processo de banalização da pandemia e sua inserção nas rotinas cotidianas das pessoas entrevistadas.
i) Neste sentido, chama a atenção que à dimensão temporal do desenvolvimento da pandemia em sua transformação discursiva e de tecnologias e programas para sua atenção adiciona-se uma dimensão subjetiva de vivência da temporalidade da pandemia, que trabalha a partir de outros marcadores. Nesta relação entre a transformação da pandemia e as percepções subjetivas de tal transformação, o aumento do número de casos e de mortes que se verificou desde o início de 2021 provocou o interesse por temas o luto por parentes e amigos falecidos, das sequelas resultantes da infecção e da própria questão da vacina, os quais tornaram-se relevantes frente à dimensão da relação entre cuidado e controle, inicialmente preponderante;
j) Com relação à vacina, as percepções matizavam-se entre os sentimentos de “esperança” e de “desconfiança”. Por terem sido uma população prioritária na vacinação e por assinalarem uma multiplicação de fontes de informação sobre vacinas que percebiam como sendo nem sempre confiáveis, foi frequente a ideia da vacinação como uma estratégia duvidosa, que, frente ao risco de contaminação e da manutenção da situação de distanciamento social, foi percebida como um risco que valia à pena ser corrido (“vale à pena correr o risco”).
k) Um ambiente visto como marcado por incertezas também justificou outras medidas de proteção contra o adoecimento, que acompanharam os entrevistados ao longo da pandemia, como o uso de chás e vitaminas para manutenção de um bom sistema imunológico que, no caso de uma eventual contaminação, contribuiria para um não agravamento da situação. A ideia de uma combinação entre diferentes estratégias – chás, vitaminas, remédios divulgados popularmente como medicamentos que previnem a Covid (ivermectina, por exemplo), bem como orações e pensamento positivo – foi deveras utilizada por este grupo, sendo frequentemente tomada como estratégia preventiva que “mal não faz”.
l) Associando-se a isso, temos algumas percepções de risco que destacavam não a idade, mas às comorbidades como fatores fundamentais para o agravamento da doença. Por isso, muitos ressaltaram a atenção ao corpo e a busca pela manutenção da saúde, notadamente realizadas a partir do alcance dos próprios entrevistados, uma vez que tais estratégias se coadunaram com a menor busca por consultas e tratamentos médicos ao longo da pandemia, para evitar a contaminação;
m) No que diz respeito às sequelas da doença, nota-se a mesma relação de privatização do cuidado, sendo a família a infraestrutura fundamental de apoio para a recuperação da doença. Temos aqui a referência à ausência de programas públicos de atenção ao “pós-Covid” e uma vivência de modificação importante nas dinâmicas das casas para possibilitar a atenção às vítimas em recuperação;
Os resultados parciais das pesquisas conduzidas pelas pesquisadoras e pelos pesquisadores da Rede Covid-19 Humanidades MCTI têm sido publicadas em artigos de periódicos nacionais e internacionais, capítulos de livro e em notas técnicas. Todas as publicações estão reunidas no website <www.ufrgs.br/redecovid19humanidades> e podem ser acessadas abertamente.
Rede Covid-19 Humanidades MCTI