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LER/Dort
Especialistas debatem superação e prevenção das LER/Dort
As Lesões por Esforços Repetitivos (LER) e Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (Dort) foram debatidos por especialistas, em celebração ao dia 28 de fevereiro, para apresentar como superar o abismo entre o conhecimento e ações de prevenção, em evento disponível no canal da Fundacentro no YouTube.
A médica e pesquisadora da Fundacentro, Maria Maeno, mediou a mesa. Na abertura, comentou que as dores decorrentes do trabalho são descritas desde a Antiguidade, mas que foi com a mecanização do processo de produção na Europa ocidental do século 18 que elas se massificaram. Destacou que, ao mesmo tempo em que ocorria um processo de aceleração do trabalho, a luta da classe trabalhadora conseguiu dar visibilidade às longas jornadas de trabalho, que impunham “desgaste do uso excessivo das estruturas musculoesqueléticas de trabalhadores e trabalhadoras submetidos à organização e gestão do trabalho que tinham e continuam tendo como centro a superexploração dos seus corpos e mentes”.
Completou dizendo que o avanço tecnológico durante esses séculos foi imenso, “mas em vez de ser usufruído, naquilo que tem de benefício e conforto, por um número cada vez maior de pessoas, tem servido para aumentar a carga de trabalho de maneira acelerada, e esta é a questão central na ocorrência de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho, entre as quais as LER/Dort”.
Desde 1999, as LER/Dort fazem parte das listas de doenças relacionadas ao trabalho do Ministério da Saúde e do Ministério da Previdência Social e desde então são as doenças relacionadas ao trabalho mais frequentemente diagnosticadas, notificadas e disseminadas em todos os ramos econômicos.
“As pesquisas nacionais de saúde do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), feitas em domicílios em 2013 e depois em 2019, mostraram que aproximadamente 3,5 milhões pessoas maiores de 18 anos referiram ter diagnósticos de LER/Dort feitos por médicos, sendo que mais de 50% das pessoas referiram ter algum grau de limitação nas atividades de vida diária”, frisou a médica. Disse ainda que “acumulou-se muito conhecimento sobre todos os aspectos das LER/Dort, sobre as atividades de trabalho que determinam a sua ocorrência, sobre a fisiopatologia dos quadros clínicos, sobre os tratamentos de dor crônica, sobre os impactos psíquicos, familiares e sociais, sobre os processos frustrados de reabilitação profissional em contextos em que não há mudanças da organização e gestão do trabalho, sobre o sofrimento imposto aos acometidos e suas famílias.”
A pesquisadora ressaltou que, no período de 1999 a 2019, ou seja, nesses últimos 20 anos, as LER/Dort continuam representando 66% das doenças relacionadas ao trabalho registradas no Instituto Nacional de Seguro Social (INSS).
Homenagem à militante nas discussões das LER/Dort
“Para finalizar essa introdução, eu gostaria de fazer uma singela homenagem a Josefina Aparecida Santos que nos deixou, precocemente, em setembro do ano passado, muito conhecida por Cida”, salientou Maeno.
A médica ressaltou que a conheceu como telefonista com LER/Dort. Após afastamentos e tratamentos, foi aposentada por invalidez. Passou a ser militante incansável e cofundadora do Movimento Luto e Luta. Formou-se em Ciências do Trabalho no Dieese e cursava Psicologia. “Deu visibilidade às dores dos trabalhadores e das trabalhadoras. Era uma pessoa extremamente solidária e generosa. Cida simbolizou uma trajetória de adoecimento pelo trabalho, de luto, em um primeiro momento, pela incapacidade e mudança de vida, e depois de luta, sem baixar a cabeça para as adversidades que enfrentou. Além disso, a trajetória dela demonstra que o Estado não é capaz de reabilitar pessoas adoecidas, pois formalmente foi considerada inválida pelo INSS”.
Superar o abismo entre o conhecimento e ações de prevenção
Dando continuidade, a ergonomista e pesquisadora da Fundacentro, Thaís Helena de Carvalho Barreira salientou que as LER/Dort trazem um alto custo social e econômico para a sociedade. E destacou: “É sempre muito importante a detecção precoce desse adoecimento, para que a doença não se torne incapacitante. Claro que toda dor e todo processo inflamatório constitui um processo temporariamente incapacitante, mas almejamos que a doença não evolua para seus estágios de doença crônica e de incapacitação irreversível.” Completa que" cabe à empresa estimular e acolher as manifestações de queixas dos trabalhadores de forma a aumentar as chances de que a intervenção corretiva na situação de trabalho seja efetiva, participativa e sustentável, e não prossiga causando mais adoecimento entre os trabalhadores".
Organização do trabalho
A ergonomista comentou sobre as condições organizacionais do trabalho, onde empresas exigem dos trabalhadores demandas elevadas de trabalho, pausas reduzidas e, principalmente, pouca margem de ação para que possam operar com estratégias regulatórias para o esforço físico e mental.
“Existem algumas determinações sociais no projeto de concepção desse trabalho que requerem reavaliações dos critérios de escolha, que estes considerem os conhecimentos existentes para a promoção da saúde e da segurança dos trabalhadores. Numa empresa, as escolhas das tecnologias que estão sendo usadas, dos materiais que estão sendo usados, do modelo organizacional e de gestão seguiram critérios e foram elaboradas a partir de projetos de concepção que determinam o conteúdo do trabalho, como ele deverá ser feito, com quais condições e recursos disponíveis”, observou Thaís.
Muitas vezes, os casos de adoecimento podem surgir após automatização de etapas do processo de produção, modificando a forma como o trabalhador está inserido nesse processo de trabalho e as estratégias gerenciais.” Existe muito conhecimento disponível para que essas escolham tragam efetividade ao trabalho humano sem sofrimento individual, coletivo, familiar e social. A pesquisadora destacou ainda que, contemporaneamente, tem havido a redução dos contratos de trabalho, ampliando os processos de terceirização, e subcontratação que colocam a classe trabalhadora em uma situação de vulnerabilidade social e de precarização das condições de trabalho, aumentando as chances de acentuar os processos de desgaste físico e mental dos trabalhadores.
A ergonomista destacou que as LER/Dort estão no grupo de adoecimentos que são desencadeados por múltiplos fatores de risco que atuam concomitantes e que podem desencadear formas de adoecimento mais severas. Assim, ao lado de posturas inadequadas, movimentos repetitivos, emprego de força, pegas de ferramentas inadequadas, mecanismos de gestão podem impor metas temporais de forma que o trabalhador é induzido a acelerar seu ritmo de trabalho. Outros aspectos mencionados como predisponentes para o adoecimento musculoesquelético são as jornadas de trabalho prolongadas ou mesmo realizar a atividade manual em ambientes muito frios.
Barreira salientou que, nas LER/Dort, além das exigências físicas, sempre existe muito trabalho invisível que requer que o profissional técnico escute os trabalhadores para conhecer e compreender todo o esforço empreendido nas tarefas que estão sendo realizadas. A exigência mental de reconhecimento e tratamento de informações sensoriais, a partir da memória e competências adquiridas, e de comando neuromotor de movimentos com mais ou menos força, e destreza manual fina estão sempre presentes com o trabalho físico manual. Além disto, é preciso considerar a subjetividade do trabalhador e a relação desta com todos os aspectos psicossociais do trabalho para compreender os aspectos psíquicos envolvidos no trabalho.
A especialista discorreu sobre o trabalho de processamento de carnes em frigoríficos, e especialmente apresentou falas de trabalhadores extraídas do documentário Carne e Osso, do Repórter Brasil. Os relatos dos trabalhadores eram de medo, ameaça e frustração de não dar conta do ritmo de trabalho imposto e evidências de situações em que o trabalhador se vê exposto pelo amontoado de peças em sua mesa e outras estratégias gerenciais de evidenciar que aquele/a trabalhador/a não deu conta do serviço demandado a ele/a.
Thaís citou que, "em empresas com alto índice de adoecimento por LER/Dort, é comum encontrar relatos de sofrimento mental também em níveis hierárquicos intermediários devido a uma ‘Síndrome Geral de Sensação de Impotência’, em que a capacidade produtiva instalada é pressionada a trabalhar para além dos seus recursos. E, nesses casos, é necessário muito diálogo interno, inclusive entre setores de venda e de produção, pois a mensagem grosseira que paira sobre todos é: “varra sem vassoura”. Assim, o número de casos de LER/Dort numa empresa pode ser utilizado como um sinal de alerta para sua própria produtividade. A ocorrência dessa forma de adoecimento vem frequentemente acompanhada de alto nível de retrabalho e de perda material, e níveis de absenteísmo, presenteísmo, e rotatividade de trabalhadores que podem comprometer a qualidade e a eficiência da produção esperada".
Relato de experiência
A socióloga, pesquisadora e membro do Instituo Walter Leser, Maria Alice Takahashi, destacou em seu relato de experiência o trabalho desenvolvido com o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest/Piracicaba) e o Programa de Reabilitação do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), no período de 2004 a 2014.
Durante 10 anos, no Cerest/Piracicaba, segundo a socióloga, foi desenvolvido um programa de reabilitação profissional dos trabalhadores adoecidos por LER/Dort, para promover ações assistenciais e de vigilância em saúde do trabalhador. A experiência foi executada em várias empresas, mas a especialista destacou uma fábrica de biscoitos de origem americana, em Piracicaba.
O programa se fundamentou na atenção terapêutica multidisciplinar e foi desenvolvido pela equipe técnica composta pela socióloga, que coordenou o projeto, psicóloga, médica, assistente social, fisioterapeuta e terapeuta ocupacional. As pesquisadoras Maria Maeno e Thaís Barreira também participaram da iniciativa.
“O objetivo foi intervir, por meio deste programa, nos aspectos físicos, psíquicos, sociais que interagiam na incapacidade para o trabalho daqueles trabalhadores que sofreram acidentes ou doenças relacionadas ao trabalho”, salientou Maria Alice. Era preciso agir nos determinantes do adoecimento-acidente presentes nas atividades de trabalho.
“O programa começou com 150 trabalhadores acometidos por LER/Dort e durante os 10 anos passaram mais de 1000 trabalhadores. Não havia um reconhecimento do nexo causal pela perícia médica do INSS, então os trabalhadores, após a crise do adoecimento, não a sua melhora, retornavam para a mesma atividade”, frisou Takahashi.
O método de vigilância e intervenção na empresa de biscoitos foi firmado por meio de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), com o Ministério Público do Trabalho (MPT). “O TAC foi feito baseado em critérios biomecânicos e recomendações de treinamento para posturas corretas dos trabalhadores. O processo de intervenção em andamento do Ministério do Trabalho e do Cerest/Piracicaba era de inspecionar e com base na norma regulamentadora 17. Constamos que essa ação tinha baixo impacto nas ações de mudança, o que ocorria mais aposentadoria dos trabalhadores do que a reabilitação para o retorno ao trabalho”, comentou a socióloga.
“Em 2016 a empresa faz uma reestruturação produtiva. Ela robotiza a esteira mecânica, elimina o couro e constrói ramais de retirada automatizada daqueles biscoitos, bem como o contingente grande de trabalhadores que ficavam na unidade”, informou Maria Alice.
Agentes da transformação
“A gente sabe que essa discussão é cheia de meandros. As doenças dos trabalhadores já eram faladas em 1700 pelo médico Bernardino Ramazzini. Assim como, Karl Marx, apontava a revolução industrial”, discorreu a enfermeira do Trabalho e servidora do Movimento Ressignificando Vidas, Lindinere Ferreira.
“Desde então, os processos de trabalho como fator de adoecimento já eram abordados. Temos um acúmulo de conhecimento, muito histórico e dados. Qual é a finalidade desse conhecimento? Segundo Paulo Freire, o conhecimento não é nada sem a prática. Mas quando você tem a prática e não contribui com conteúdo se tem apenas o ativismo. Quando se tem as duas coisas origina-se a praxe que é ação criadora e transformadora dessa realidade”, frisou Lindinere.
Para ela, essa iniciativa faz com que as pessoas se empoderem e acumulem conhecimento para serem agentes transformador. Isso vale para os trabalhadores que podem usufruir desse método e reivindicar melhores condições de trabalho.
A enfermeira disse ainda que as empresas preferem pagar multa a ter uma ação que previne acidentes e doenças relacionadas ao trabalho. “É preciso desconstruir essa cultura empresarial e colocar a saúde como direito humano”. Ferreira também chamou a atenção para a exigência de cumprir metas e ser o (a) funcionário (a) do mês, essa prática pode promover, além da rotina exaustiva, o surgimento de doenças ocupacionais e distúrbios psicossomáticos.
“A responsabilidade do acidente é da empresa. Se o trabalhador naquele momento, de alguma forma negligenciou, é porque ele estava cansado”. Lindinere trouxe um leque de atividades que coloca o trabalhador na precarização do trabalho. São os casos dos motoboys, motoristas de aplicativo, bancários e tantos outros profissionais. São vários fatores de violência no trabalho, como o assédio moral e sexual, o estímulo de competição e quando o trabalhador passa a ser o fiscal do outro. No caso dos trabalhadores com LER/Dort, essa prática da empresa pode colocar o profissional adoentado como um preguiçoso e que faz corpo mole para o trabalho.
Durante a sua apresentação, é informado sobre outros pontos importantes para compreender que a saúde e segurança dos trabalhadores são imprescindíveis para um ambiente laboral saudável. Para ela, é importante que a Política Nacional de Segurança e Saúde do Trabalhador (Ministério do Trabalho) e a Política do Trabalhador do Sistema Único de Saúde – SUS (Ministério da Saúde) trabalhem em conjunto e se dialoguem entre si.
O debate final da live e o vídeo completo estão disponíveis no canal do Youtube da Fundacentro.