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INCLUSÃO
HUGG realiza as primeiras cirurgias de redesignação de gênero de sua história
No mês do Orgulho LGBTQIAP+, o Hospital Universitário Gaffrée e Guinle (HUGG) se tornou parte de um marco histórico para a população trans do Rio de Janeiro. A unidade, administrada pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), mantendo seu pioneirismo nos tratamentos e confirmando sua veia humanística, foi credenciada pelo Ministério da Saúde (MS) e é o mais novo hospital a oferecer pelo SUS, cirurgias de redesignação sexual no Brasil. Na última sexta-feira (23), foi dado início aos procedimentos e três mulheres trans já foram submetidas à cirurgia.
Elas tiveram duração de aproximadamente 4h e foram coordenadas pela equipe do Serviço de Urologia com o apoio de cirurgiões plásticos e do urologista argentino Javier Belinky, do Hospital Carlos G Durand, localizado em Buenos Aires. As pacientes ficarão internadas por cerca de cinco dias até a alta. O HUGG já realizava cirurgia reconstrutora urogenital e, a partir do apoio da superintendência, solicitou a habilitação do novo serviço. “Esse procedimento está inserido no âmbito do SUS, que tem uma linha de cuidado nessa área, portanto, é extremamente relevante que um hospital universitário seja habilitado, até porque faz parte da cultura dos HUs estarem envolvidos em temáticas como essa”, explicou o coordenador do Serviço de Urologia do hospital, André Cavalcanti.
O cuidado com a população trans acontece na Atenção Básica e na Especializada. A Atenção Básica se refere à rede de saúde responsável pelo primeiro contato e avaliações médicas. Já a Atenção Especializada, que é o caso do HUGG, é dividida em duas modalidades: ambulatorial, que inclui acompanhamento psicoterapêutico e hormonioterapia, que dura em torno de dois anos; e hospitalar, que abrange a realização de cirurgias e o acompanhamento antes e depois dos procedimentos operatórios.
“O hospital está habilitado na modalidade hospitalar, que é a etapa mais avançada. Faremos cirurgias em mulheres trans que já chegam tendo passado pelo processo hormonal, o que basicamente é fazer uma neovagina na mulher trans. Estamos montando uma estrutura com o objetivo de ser multidisciplinar. Hoje temos serviços de Urologia e Cirurgia Plástica envolvidos e queremos trazer outras áreas vinculadas no processo”, informou o coordenador do Serviço de Urologia do HUGG, completando que um dos motivos de se ter optado, neste primeiro momento, pela modalidade hospitalar é para aliviar o gargalo cirúrgico, já que apenas seis centros são credenciados para realização desse tipo de procedimento, entre eles, dois também fazem parte da rede Ebserh: Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco e Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás.
O médico também explicou os critérios de inclusão das pacientes atendidas no HUGG, que devem ter passado por todas as etapas anteriores do processo transexualizador em unidades credenciadas pelo Ministério da Saúde. “Caso alguma paciente esteja no início desse processo, e nos procure diretamente, ela será encaminhada ao posto de saúde com uma guia de referência e contrarreferência, já que a prescrição de hormônios faz parte da esfera da Atenção Básica à Saúde”, disse.
Referência
A intenção do HUGG é ampliar o atendimento e se tornar referência. “Na verdade, o objetivo é nos tornarmos uma referência nacional, ajudando na formação de novos médicos e trabalhando em equipes multidisciplinares. Queremos criar aqui um modelo de atendimento que, talvez, no futuro, possamos replicar em outros centros”, disse o coordenador do Serviço de Urologia do hospital, André Cavalcanti.
Outro ponto levantado pelo urologista foi a importância do credenciamento, que possui um rito organizado com fluxos definidos e permite receber verbas adequadas do MS para esses procedimentos específicos. E, nem mesmo a demora na obtenção da certificação, ocasionada pela pandemia de Covid-19, foi capaz de tirar o valor dessa conquista. “A importância é que estamos inseridos em um processo que é uma demanda social. Existem pacientes que sofrem de disforia de gênero (presente quando há uma dissonância aflitiva entre o sexo biológico da pessoa e o papel social do gênero a ele associado, conforme atribuído no nascimento, e o senso da pessoa de seu próprio gênero), que é considerado um problema médico. Temos de considerar que essa população merece os mesmos cuidados como qualquer cidadão brasileiro”, finalizou.
História de luta, história de glória
Um oásis no deserto. Assim, Kathyla Katheryne Valverde, 56, pedagoga, musicista, mulher transexual, ativista dos Direitos Humanos, transfeminista e doutoranda de música da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), define a importância da disponibilidade pelo SUS do processo transexualizador. “Eu vivia dentro da caverna de mim mesma. Sabia que o suicídio não era uma alternativa, pois sou de família cristã e sei que não tem salvação, caso contrário teria me matado. Era uma pessoa muito triste e amarga. E, dentro da seara da transexualidade, eu me olhava no espelho e ficava amargurada. Via meu semblante, meu corpo e achava aquilo horrível”, falou, demonstrando o sofrimento vivido por pessoas com a mesma condição. Antes de passar pela redesignação de gênero, Kathyla tentou buscar, no reconhecimento musical, uma projeção artística que conseguisse dar suporte para “sair do armário” e receber apoio da sociedade. “Graças a Deus, o meu talento me permitiu estar num nível bastante acima da média do que era praticado aqui. Conseguia tocar o que estava sendo feito lá fora, mas não conhecia ninguém, morava no subúrbio e as dificuldades eram grandes”, completou.
O tempo foi passando e a busca pela autoafirmação não permitiu, inicialmente, concretizar seus planos. “A Laerte (cartunista) é um exemplo para mim do que queria fazer. Viveu dentro de uma caixa para se preparar”, continuou.
A tristeza causada pela disforia de gênero foi se agravando, até que um dia, enquanto visitava um sebo de uma amiga, encontrou uma entrevista sobre uma cantora trans alemã que havia passado pelo processo transexualizador. “Não sabia que o programa existia. Estava com medo e pesquisei no mundo as técnicas das referências na área. Perguntei ao meu médico e ele me indicou tratamento num centro especializado, onde fiquei por seis meses”, contou. Após esse período, Katheryne foi encaminhada para o Hospital Universitário Pedro Ernesto, outro centro no Rio de Janeiro credenciado para fazer a modalidade hospitalar do processo transexualizador.
Pioneira
Kathyla foi a primeira mulher trans do Rio de Janeiro a fazer toda documentação social sem ter passado pelo processo transexualizador. Em 2016, finalmente, conseguiu realizar a cirurgia de redesignação sexual, mas as dificuldades encontradas pelo caminho não a impediram de pensar em outras pessoas que passam pelo mesmo problema. “O desespero é tão grande que, aqui no Brasil, muitas mulheres se sujeitam a participar de qualquer coisa para alterar a anatomia. Tudo para acabar com o sofrimento. Fiz parte da câmara técnica de saúde LGBT, que se tornou conselho. Graças a Deus, pude dar muitas contribuições para o movimento social”, disse.
Atualmente, a musicista se encontra feliz e realizada ao se olhar no espelho. “Me sinto como aquelas grades antigas que foram recebendo diversas camadas de tinta. Me sinto como se fosse esse portão pintado ao longo dos anos pela sociedade. E cada pintura era uma delimitação para me enquadrar. Busquei a minha tinta original, enquanto raspava as tintas do preconceito”, afirmou.
Katheryne também está orgulhosa por estudar em uma instituição que está abrindo as portas para que mais mulheres trans encontrem sua pintura original, especialmente por se tratar, simbolicamente, do mês do Orgulho LGBTQIAP+, que, para ela, é uma das maneiras corretas de incentivar as pessoas a manterem suas esperanças, estimulando o coletivo e mostrando suas existências, que vêm desde o início da humanidade. “O HUGG sempre foi pioneiro, desde o tratamento do HIV, e estou muito contente com isso. A UNIRIO, para mim, é uma instituição muito especial, diferenciada em todos os sentidos. Estamos quebrando um paradigma. Temos excelência e referência, com as melhores práticas”, concluiu.
No SUS
O termo "transgênero" é utilizado para descrever pessoas cuja identidade de gênero difere do sexo atribuído ao nascimento. Muitos indivíduos trans sentem uma desconexão entre sua identidade de gênero e seus corpos, como se tivessem nascido no corpo errado. Em agosto de 2008, o Sistema Único de Saúde (SUS) estabeleceu o processo transexualizador, o qual permitiu que essa população tivesse acesso a procedimentos de harmonização, cirurgias de modificação corporal e genital, bem como acompanhamento de profissionais de diversas áreas. Em 2013, por meio da Portaria 2803/2013, o programa foi redefinido e expandido para incluir também homens trans e travestis no processo transexualizador do SUS, visto que, até então, apenas mulheres trans recebiam assistência por meio desse serviço.
Sobre a Rede Ebserh
O HUGG-Unirio faz parte da Rede Ebserh desde dezembro de 2015. Vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a Ebserh foi criada em 2011 e, atualmente, administra 41 hospitais universitários federais, apoiando e impulsionando suas atividades por meio de uma gestão de excelência. Como hospitais vinculados a universidades federais, essas unidades têm características específicas: atendem pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) ao mesmo tempo em que apoiam a formação de profissionais de saúde e o desenvolvimento de pesquisas e inovação.
Por Felipe Monteiro, com revisão de Luna Normand e Marília Gabriela Rego
Coordenadoria de Comunicação Social/Ebserh