ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA-GERAL DA UNIÃO
CONSULTORIA JURÍDICA JUNTO AO MINISTÉRIO DA CULTURA
COORDENAÇÃO-GERAL DE POLÍTICAS CULTURAIS

 

 

PARECER nº 309/2025/CONJUR-MINC/CGU/AGU

PROCESSO nº 01400.023261/2025-14

INTERESSADA: Diretoria de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas

ASSUNTO: Fiscalização do Conselho Federal de Biblioteconomia.

 

EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. CONSELHO PROFISSIONAL.
I - Atividade de fiscalização do Conselho Federal de Biblioteconomia. Penalidades aplicadas a bibliotecas públicas e comunitárias do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas - SNBP.
II - Impossibilidade de autuação de bibliotecas em razão da mera ausência de bibliotecário no estabelecimento. Necessidade de revisão de procedimentos junto aos conselhos regionais.

 

Sra. Consultora Jurídica,

 

Cuidam os autos em epígrafe de consulta formulada pela Diretoria de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (DLLLB) por meio da Nota Técnica nº 6/2025 (SEI/MinC 2378931) acerca das medidas que podem ser adotadas pelo poder executivo federal diante de sanções, consideradas ilegais pela DLLLB, que vêm sendo aplicadas pelo Conselho Federal de Biblioteconomia e têm afetado o funcionamento de bibliotecas públicas e bibliotecas comunitárias pelo país, e, por conseguinte, a eficácia e efetividade do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), política pública do Ministério da Cultura destinada a articular, apoiar, integrar e fortalecer as bibliotecas brasileiras, incluindo bibliotecas comunitárias.

Segundo informado na referida Nota Técnica, a expansão e qualificação de bibliotecas comunitárias é uma das metas do Plano Nacional de Cultura (PNC), elemento estruturante do Sistema Nacional de Cultura (SNC), sendo inclusive uma categoria de espaço cultural não institucionalizado expressamente beneficiada com recursos da Política Nacional Aldir Blanc, instituída pela Lei nº 14.399/2022 (art. 10, inciso VIII). 

No entanto, não obstante o reconhecimento legal de tal modalidade de biblioteca gerida por comunidades locais e sua importância estratégica para a estruturação do SNC e garantia de acesso às fontes de cultura por tais comunidades, independentemente do nível de institucionalidade do equipamento público, relata-se que o Conselho Federal de Biblioteconomia, por meio de seus conselhos regionais, no exercício de suas prerrogativas de fiscalização da atividade profissional de bibliotecário, estaria extrapolando suas atribuições e aplicando multas a diversas bibliotecas públicas e comunitárias integrantes do SNBP e determinando o fechamento de tais estabelecimentos, em razão da ausência de um profissional bibliotecário responsável por seu funcionamento.

É o relatório. Passo à análise.

Preliminarmente, é importante destacar que os autos não se encontram instruídos com informações detalhadas sobre o teor dos autos de infração lavrados pelos conselhos de biblioteconomia a pretexto do não comprimento de requisitos de funcionamento pelas bibliotecas multadas, o que não permite identificar precisamente os motivos que têm levado diversas bibliotecas públicas e comunitárias a fechar suas portas, impedidas de funcionar.

A princípio, portanto, tomaremos como pressuposto que em todos os casos objeto da presente consulta, os conselhos de biblioteconomia têm autuado pessoas físicas e jurídicas identificadas como responsáveis pelo funcionamento de bibliotecas nas quais não tenha sido identificado um profissional bibliotecário regularmente inscrito em Conselho Regional de Biblioteconomia atuando durante o seu horário de funcionamento. Caso os fatos indiquem que há situações diversas que tenham justificado a autuação, deverá o caso ser objeto de consulta específica.

Conforme estabelecido nos arts. 1º e 2º e 26 da Lei nº 4.084/1962, o exercício da profissão de bibliotecário é privativo de bacharéis em biblioteconomia que, além da respectiva formação, estejam regularmente registrados junto a algum Conselho Regional integrante do Conselho Federal de Biblioteconomia, bem como adimplente com suas obrigações junto ao referido conselho de fiscalização profissional. Este requisito de qualificação profissional também está estabelecido nos arts. 1º e 3º e 4º da Lei nº 9.674/1998, que dispõe sobre a profissão de bibliotecário.

Portanto, sem o cumprimento de tais requisitos, é vedado o exercício da profissão, isto é, o exercício do conjunto das atribuições típicas da profissão segundo a lei. Logo, qualquer atividade que não seja considerada exclusiva do profissional bibliotecário não pode estar sujeita a tais requisitos de qualificação profissional.

Segundo o art. 6º da Lei nº 4.084/1962, são atribuições exclusivas dos Bacharéis em Biblioteconomia:

(…) a organização, direção e execução dos serviços técnicos de repartições públicas (…) e empresas particulares concernentes às matérias e atividades seguintes:
a) o ensino de Biblioteconomia;
b) a fiscalização de estabelecimentos de ensino de Biblioteconomia reconhecidos, equiparados ou em via de equiparação.
c) administração e direção de bibliotecas;
d) a organização e direção dos serviços de documentação.
e) a execução dos serviços de classificação e catalogação de manuscritos e de livros raros e preciosos, de mapotecas, de publicações oficiais e seriadas, de bibliografia e referência. [grifamos]

Da leitura do referido dispositivo, já é possível, de início, excluir estabelecimentos de instituições privadas sem fins lucrativos de qualquer atividade exclusiva de profissionais bibliotecários inscritos no conselho profissional.

Além disso, o artigo em questão é claro ao estabelecer que, mesmo para bibliotecas públicas ou bibliotecas privadas com fins lucrativos, apenas alguns serviços técnicos estritamente relacionados à biblioteconomia são restritos a bacharéis inscritos no conselho profissional, a saber: (i) atividades de ensino e fiscalização do ensino de biblioteconomia (art. 6º, alíneas “a” e “b”); (ii) organização, execução e direção de serviços de documentação, entendidas aqui como as atividades de elaboração de sistemas de classificação e catalogação e supervisão da atividade de elaboração (art. 6º, alíneas “d” e “e”); e (iii) administração e direção de bibliotecas, entendidas aqui como atividades de supervisão da demais atividades exclusivas de bibliotecários.

Tanto é assim que o art. 7º da Lei nº 4.084/1962, logo em seguida, estabelece que outros serviços, mesmo que técnicos, não relacionados diretamente ao ensino ou à elaboração de sistemas de classificação ou catalogação, não são considerados exclusivos de profissionais bibliotecários registrados, podendo, no máximo, ser atribuídos preferencialmente a tais profissionais, mediante políticas de incentivo que podem ser conduzidas pelo poder público ou pelo próprio conselho profissional. Entre estas atribuições não-exclusivas, elencam-se expressamente as seguintes:

a) demonstrações práticas e teóricas da técnica biblioteconômica em estabelecimentos federais, estaduais, ou municipais;
b) padronização dos serviços técnicos de biblioteconomia;
c) inspeção, sob o ponto de vista de incentivar e orientar os trabalhos de recenseamento, estatística e cadastro das bibliotecas;
d) publicidade sobre material bibliográfico e atividades da biblioteca;
e) planejamento de difusão cultural, na parte que se refere a serviços de bibliotecas;
f) organização de congressos, seminários, concursos e exposições nacionais ou estrangeiras, relativas a Biblioteconomia e Documentação ou representação oficial em tais certames. [grifamos]

Portanto, qualquer interpretação extensiva da lei que exceda os limites especificados no seu art. 6º, com o intuito vincular outras atividades aos profissionais bibliotecários de forma exclusiva, caracteriza grave cerceamento ao livre exercício de atividade profissional, garantia constitucional assegurada no art. 5º, inciso XIII, da Constituição Federal. 

Não é possível interpretar qualquer dispositivo da Lei nº 4.084/1962 de forma a restringir a bibliotecários registrados o exercício de atividades relacionadas à circulação ou divulgação de informações, obras ou serviços culturais diversos inerentes ao funcionamento de bibliotecas ou estabelecimentos culturais similares. Assim, não são exclusivas de bibliotecários, por exemplo, as atividades de atendimento ao público e operação de sistemas de classificação e catalogação de informações

O próprio Decreto nº 56.725/1965, que regulamenta a lei, reforça que não há outra interpretação possível para o texto legal ao simplesmente repeti-lo nesse aspecto. Além disso, os dispositivos da Lei nº 9.674/1998 que redefiniriam as atribuições da profissão e revogariam a Lei nº 4.084/1962 foram expressamente vetados, o que demonstra a intenção de manter restritas as atribuições típicas da profissão àquelas definidas na legislação de 1962.

Por outro lado, é importante também observar que a legislação de regência da profissão de bibliotecário não estabelece requisitos para o funcionamento de bibliotecas, tampouco exige a presença de bibliotecário em bibliotecas, apenas estabelecendo requisitos para o exercício da profissão de bibliotecário. Logo, para o funcionamento ordinário e cotidiano de uma biblioteca não é necessário que haja um profissional bibliotecário constantemente presente no estabelecimento, da mesma forma como não se exige por exemplo, a presença constante de um profissional arquiteto ou engenheiro em uma obra. Apenas se submetem à presença constante de profissional habilitado em seus estabelecimentos as atividades que, em razão do risco social envolvido, possuem tal exigência expressamente prevista em lei. Caso contrário, este tipo de controle pelo conselho profissional também caracteriza grave violação ao livre exercício de atividade profissional, como já mencionado, além de violação ao princípio da livre iniciativa, insculpido no art. 170, parágrafo único, da Constituição.

Em outras palavras, a ausência de bibliotecário habilitado em um estabelecimento não impede que este estabelecimento funcione como uma biblioteca; apenas significa que este estabelecimento não oferecerá ao usuário os serviços que somente podem ser fornecidos por bibliotecários, que, a rigor, convém ressaltar, não serviços ordinariamente destinados aos usuários das bibliotecas, mas às próprias bibliotecas, instituições de ensino e seus gestores. 

Especialmente por executarem atividades nitidamente relacionadas à liberdade de expressão, à liberdade de informação, as bibliotecas e os trabalhadores que atuam em tais instituições não podem sujeitar-se a restrições que impeçam ou limitem o cumprimento de sua função social relacionada a tais liberdades fundamentais, como bem observado na Nota Técnica nº 6/2025 (SEI/MinC 2378931). E também por esta razão, os requisitos legais de habilitação para a profissão de bibliotecário devem ser interpretados conforme tais direitos fundamentais previstos na Constituição, não podendo extrapolar as atribuições de caráter estritamente técnico necessárias ao correto exercício de atividades de ensino, organização, execução e direção de serviços de documentação. Jamais se pode invocar a exclusividade desta atividade profissional para impedir o funcionamento de uma biblioteca em seus serviços mais básicos de circulação e divulgação de conhecimento, ainda que se trate de equipamentos não institucionalizados ou com acervos sem tratamento catalográfico. 

Assentadas as premissas de que (i) a contratação ou a presença de bibliotecário não é requisito para o funcionamento de uma biblioteca; e que (ii) os diversos serviços bibliotecários direcionados ao público e relacionados à circulação, difusão e divulgação não estão entre as atribuições exclusivas de bibliotecários; conclui-se que (iii) a ação fiscalizatória dos conselhos de biblioteconomia devem restringir-se à certificação de que os profissionais que realizam as atividades exclusivas de bibliotecários sejam realizadas por profissionais habilitados. 

Não é possível que, no exercício de seu poder de polícia, tais conselhos profissionais, apliquem sanções a bibliotecas ou pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pela gestão de bibliotecas por condutas que não caracterizem o exercício irregular da profissão de bibliotecário. Da mesma forma, a inexistência de serviços exclusivos de bibliotecários em bibliotecas não constitui infração púnivel pelos conselhos de biblioteconomia, somente sendo possível a autuação de condutas que importem em exercício irregular de atividades de elaboração de sistemas de classificação e catalogação de documentos e acervos. Se as bibliotecas públicas ou comunitárias autuadas não possuem tais sistemas ou se os possuem mediante simples aquisição de serviços de terceiros, e não mediante serviço de um bibliotecário que preste este serviço diretamente no estabelecimento, tal situação não caracteriza infração sujeita ao controle dos conselhos de biblioteconomia.

Em tais situações descritas no parágrafo anterior, eventuais autuações e penalidades aplicadas podem ser consideradas abusivas e irregulares, jamais podendo ensejar o fechamento de estabelecimentos. Portanto, são passíveis de impugnação administrativa, junto às instâncias hierárquicas do próprio Conselho Federal de Biblioteconomia, ou mesmo impugnação judicial, em caso de não reconsideração pelo conselho profissional.

Da parte do Ministério da Cultura, considerando seu interesse direto na preservação da integridade do SNBP e garantia do pleno funcionamento das bibliotecas públicas e comunitárias que integram o sistema, parece-me possível interceder junto ao Conselho Federal de Biblioteconomia para que, como órgão superior deliberativo e normativo, avalie as medidas cabíveis para uniformização de entendimentos e procedimentos, inclusive em parceria com o poder executivo federal, com o objetivo de assegurar o pleno funcionamento de bibliotecas públicas e comunitárias em todo o território nacional.

Por fim, observamos ainda que, por se tratar de autarquia especial, o Conselho Federal de Biblioteconomia não se sujeita ao controle ou supervisão direta de qualquer órgão do poder executivo federal, respondendo apenas perante o Tribunal de Contas da União, na forma do art. 31 da Lei nº 4.084/1962, ou excepcionalmente ao Ministério do Trabalho e Emprego, apenas no que se refere aos seus processos eleitorais, conforme art. 33 e 35 da mesma lei. Em caso de não solução administrativa da controvérsia pelas instâncias próprias do Conselho, é possível a tentativa de conciliação por meio da Câmara de Mediação e de Conciliação da Administração Pública Federal – órgão de mediação da Advocacia-Geral da União – nos casos em que as penalidades aplicadas atinjam diretamente instituições públicas federais ou outras instituições públicas ou privadas com vínculo com o SNBP, conforme a Portaria Normativa AGU nº 178/2025.

 

À consideração superior.

 

Brasília, 17 de outubro de 2025.

 

 

(assinado eletronicamente)

OSIRIS VARGAS PELLANDA

Advogado da União

Coordenador-Geral Jurídico de Políticas Culturais


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